Supondo que Deus exista, Ele é (por definição) o Valor supremo. Ora, nenhum ser humano pode prescindir de ter um Norte, de estabelecer uma Preferência acima de todas as outras, em função da qual organiza todas as decisões. Para que o exercício da liberdade não seja totalmente privado de significado não bastam os objectivos de segunda ordem, que remetem para uma opção mais fundamental, é preciso que essa finalidade essencial, que orienta toda a vida, tenha um valor absoluto. Por outras palavras, se alguém estiver convencido de que a sua vida não tem um farol validamente absoluto, pode tirar a conclusão em termos existenciais: «todas as minhas decisões são arbitrárias, sou irrelevante, nada tem sentido; corro para nada». Em contrapartida, quem reconhecer um Valor absoluto, afirma (por definição) que Deus existe.
Não se trata agora de saber se aquilo a que se atribui um valor absoluto é digno de tão grande apreço, ou é um falso absoluto. O ponto é que não é possível rejeitar a própria noção de absoluto sem comprometer radicalmente o homem (4). O lugar máximo dos valores humanos pode ser Deus ou qualquer «deus», mas não pode estar vazio, porque é esse cume que preside e dá significado a todas as escolhas.
Quando o objectivo máximo de uma pessoa é um deus, com minúscula, não temos o ateísmo mas a idolatria. Portanto, a alternativa a Deus não é o ateísmo, a alternativa situa-se entre o verdadeiro Deus e um falso deus ― entre Deus e a idolatria: por isso a Bíblia ignora o ateísmo e critica longamente a idolatria.
O ateísmo propriamente dito, que acarreta a confissão do vazio da própria liberdade, pode chegar a dar-se? Alguém pode, com sinceridade, declarar-se tão desorientado que não reconheça nenhum valor absoluto? Haverá algum marxista tão convicto que declare sinceramente que nada distingue a justiça da injustiça, a não ser um fatalismo ideológico que manipula a consciência das pessoas (5)? É que, ainda que a convicção de reconhecer a verdade fosse o produto irracional das circunstâncias externas, tal convicção não deixaria de se dar. Que sentido tem, então, afirmar o ateísmo e, ao mesmo tempo, estar intimamente convencido de que há um valor absoluto?
Marx afirma que «a crítica da religião (...) faz com que o homem se torne para o próprio homem o Sol real» (6). Admitamos que sim, que o Ser Supremo é o homem (pelo menos para o próprio homem, como diz Marx ironicamente). Mas nesse caso haveria Deus ― pelo menos na opinião do próprio homem. O drama é que, depois de afirmar que o homem é o ser supremo, negar que Ele existe é cair no grau mínimo de consideração por si próprio. O problema do ateu é ter um deus que não passa de uma completa ilusão: tão completa que, por exemplo, segundo Marx, nem o sujeito que se auto-ilude é real! Em primeiro lugar, não é o indivíduo real que pensa que constitui o espírito absoluto (7), aliás o indivíduo isolado, que «é apenas um átomo social», não é nada, a tal ponto que a «vida individual e a vida social não são distintas» (8). Em segundo lugar a humanidade, no seu conjunto, não passa de interacções sociais (9), algo fortuito e sem personalidade, porque «a essência humana não possui nenhuma realidade verdadeira» (10). O homem que se julga o ser supremo está supinamente iludido, defrauda-se a si próprio numa fanfarronada desesperada: «Eu não sou nada e teria de ser tudo» (11).
Julgando arrancar ao homem a sua máxima ilusão, o ateísmo oferece-lhe a máxima desilusão. Em nome da verdade? Nem isso, porque justamente se trata de negar que alguma verdade real possa dar sentido à vida. A proclamação do ateísmo entende-se a si própria como um clamor inútil de infelicidade ―de uma infelicidade extrema e inultrapassável―, grito de quem toma consciência de que tudo é horrível e que não há opiáceo que chegue para diluir o fel da tristeza. É neste contexto que Marx explica a religião como tentativa de fuga: «a religião é um protesto contra a infelicidade. (...) A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, pois é a alma de condições desalmadas. É o ópio do povo» (12).
A mágoa do ateísmo é demasiado séria para se curar apenas com argumentos de lógica, mas não deixa de ser um mistério que a angústia de pensar que o Absoluto não existe se possa apresentar como tão absoluta. Porque o ateu não conseguiu afinal eliminar de si a convicção do absoluto, apenas trocou o verdadeiro Deus por um absoluto falso e terrivelmente misterioso, que é a completa antinomia do Absoluto Bem.
Prof. José Maria C. S. André
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