A doutrina do Purgatório constitui um dogma de fé que a Igreja ensina por seu constante magistério (cf. CIC, n° 1031). Vejamos em que consiste.
1)O amor a Deus, num cristão, pode coexistir com tendências desregradas e pecados leves (ao menos semideliberados). Há sim, em todo indivíduo humano, um lastro inato de desordem: egoísmo, vaidade, amor próprio, covardia, negligência, moleza... Tudo isso se acha tão intimamente araigado no interior do homem que chega, por vezes, a acompanhar as suas mais sérias tentativas de elevar-se a Deus e dar a Ele o lugar primacial que lhe compete. A psicologia das profundidades ensina que essas tendências nem sempre são conscientes, mas muitas vezes atuam nosso subconsciente ou no inconsciente.
O Pecado deixa ferrugem na alma
2)Mais: todo pecado (principalmente quando grave, mas também a falta leve) deixa na alma resquícios de si ou uma inclinação má (metaforicamente: deixa uma cicatriz, deixa um pouco de ferrugem na alma, dificultando-lhe a prática do bem). Com efeito, o pecado implica sempre numa desordem. Quando, após o pecado, a pessoa se arrepende e pede perdão a Deus, o Pai do Céu perdoa (o Senhor nunca rejeita a contrição sincera). Mas o amor do pecador arrependido, por mais genuíno e leal que seja, pode não ser suficiente para extinguir todo resquício de amor desregrado e egoísta existente na alma. Em consequência, o pecador arrependendido recebe o perdão do seu pecado, mas ainda deve-se libertar da desordem deixada pelo pecado em sua alma. De fato, quantas vezes se verifica que, mesmo após uma confissão sincera e contrita, o cristão recai nas faltas de que se arrependeu!
Isso se deve ao fato de que ficou no seu íntimo a raiz ou princípio do pecado. Para extirpar o princípio do pecado remanescente, o cristão deve excitar e exercitar mais intensamente o amor a Deus.
Ora esse estímulo do amor a Deus se realiza mediante a satisfação ou atos de penitência que despertem e fortaleçam o amor a Deus no íntimo cristão. Notemos bem: a satisfação assim entendida não deve ser comparada a uma multa mais ou menos arbitrária imposta por Deus ou a um castigo vingativo; é antes, um auxílio medicional; é também uma exigência do amor do cristão a Deus, amor que, estando debilitdo, pode ser corroborado e purificado.
Exprimindo essas verdades em termos precisos, o Concílio de Trento em 1547, frente às objeções protestantes, fez importantes declarações. Rejeitou, por exemplo, a senteça segundo a qual "a todo pecador penitente que tenha recebido a graça da justificação, é d etal modo perdoada a ofensa e desfeita e abolida a obrogação de pena eterna, que não lhe fica pena temporal a padecer ou neste mundo ou no outro, no purgatório, antes que lhe possam ser abertas as portas para o Reino dos Céus" (DS 1589).
O Concílio de Trento declarou ainda: "No tocante à satisfação, é de todo e falso alheio à Palavra de Deus afirmar que a culpa nunca é perdoada. Com efeito, nas Escrituras Sagradas encontram-se claros e famosos exemplos que (...) refutam este ero com plena evidência" (DS 1689). A culpa é perdoada, sim. Mas a Escritura mostra que, mesmo depois de perdoada, o Senhor Deus exige satisfação ou reparação da ordem violada pelo pecado.
Esta exigência é facilmente compreensível, se levarmos em conta o seguinte: quem rouba um relógio, pode pedir e receber o perdão do respectivo proprietário, mas este exigirá que a ordem seja restaurada ou que o relógio volte ao seu dono. Da mesma forma, quem difama caluniosamente o seu próximo, pode pedir e receber o perdão deste, mas a pessoa difamada exigirá que se restaure a fama a que tem direito.
Também os pecados meramente internos (de pensamento e desejo) alimentam ou suscitam desordem interna no pecador, de modo que este precisa de restaurar ou introduzir a ordem em seu íntimo, mediante atos de penitência ou renúncia. Tenhamos em vista os seguintes casos: a) Davi, culpado de homicídio e adultério, foi agraciado ao reconhecer o delito; não obstante, teve que sofrer a pena de perder o filho do adulterio (cf. 2Sm 12, 13s); b) Moisés e Aarão cederam à pouca fé em dados momentos da sua vida; por isso, foram pelo Senhor privados de entrar na Terra Prometida, embora não haja dúvida de que a culpa lhes tinha sido perdoada (cf. Nm 20, 12s; 27, 12-14; Dt 34, 4s).
Em outros casos, o perdão é estritamente associado a obras de expiação. Assim o profeta Joel, com a conversão do coração, exige jejum e pranto (cf. JL 2, 12s); o velho Tobit ensina a seu filho que a esmola o libertará de todo pecado e da morte eterna (cf. Tb 4, 11s); algo de semelhante é anunciado por Daniel ao rei Nabucodonosor (cf. Dn 2, 24).
Desordem para o próximo e o mundo
3)Levemos em conta também que, mesmo após haver recebido o perdão do pecado, o homem fica sendo responsável pela desordem que o pecado geralmente acarreta para o próximo e para o mundo. As palavras e as ações de um homem tem, frequentemente, dimensões muito mais amplas do que as do momento presente; seus efeitos escapam às previsões e ao controle de quem as produz. Não é raro que, no decorrer de sua peregrinação terrestre, o homem deixe marcas de sua atividade, as quais continuarão atuantes mesmo depois da morte do respectivo sujeito.
4)A justa satisfação pode ser prestada ainda na vida presente (processo este que é normal e deveria ser considerado por todos os cristãos como programa de vida aqui na Terra), quando o penitente então se empenha, corajosamente, por livrar-se de suas más tendências e tornar puro o seu amor a Deus e ao próximo. Se não o consegue nessa peregrinação (por motivo de covardia, tibieza ou outro qualquer), compreende-se logicamente que deverá chegar a essa pureza na vida póstuma, antes de entrar na visão face a face de Deus.
Nessa hora, a criatura se arrependerá por ter condescendido com a moleza e a indefinição; a alma terá consciência de que deveria ter sido mais coerente e menos leviana; tomará consciência de que foi cercada pelo amor de Deus no decorrer de toda a sua vida e o ignorou ou esbanjou (amarga consciência). Essa verificação não poderá deixar de lhe ser dolorosa, principalmente porque a alma perceberá que, por causa de sua indefinição na Terra, será adiada ou postergada a sua entrada no gozo definitivo de Deus. Além disso, lhe será duro averiguar que faltou ao encontro marcado com Deus justamente após a morte, quando os fiéis mais fome e sede tem de Deus.
Eis a autêntica noção de purgatório. Vemos que é algo de muito lógico, fundamentado na Escritura e aprofundado pela tradição da Igreja. Possam os fiéis tomar consciência sempre mais viva da necessidade de perfazer seu purgatório na presente vida mesmo!
*BETTENCOURT, Estevão Tavares. Católicos perguntam: Purgatório. Editora Mensageiro de Santo Antônio. Pgs: 175 a 180
Aprofundando ainda essas idéias, podemos dizer: é devagar ou lentamente que o homem torna-se, segundo todas as dimensões do seu ser, aquilo que ele já é no núcleo de sua personalidade. Em outros termos: uma decisão generosamente abraçada pela vontade do homem não costuma penetrar e mover instantaneamente todas as camadas da personalidade; ela muitas vezes encontra, no fundo da consciência ou também no inconsciente do indivíduo, uma resistência mais ou menos tenaz, resistência essa que deve ser vencida, de modo a exigir da alma o empenho cada vez mais enérgico do seu amor, a fim de que este possa penetrar em toda a respectiva personalidade.
Fala-se de fogo do purgatório; todavia, isso não é senão uma metáfora, para designar o sofrimento decorrente do adiamento da visão face a face. Paradoxalmente, o purgatório é também um estágio de vida cumulado de alegria...Com efeito, esta jorra da consciência que a alma tem, de que pertence ao amor de Deus de modo irreversível. Ela sabe que é o amor que a purifica e que nela cresce, a fim de poder penetrá-la por completo. Deve-se mesmo dizer que a alma no purgatório não deseja evitar este estado, pois reconhece que o mesmo é um dom da misericória divina, sem o qual não poderia atingir a sua consumação.
Eis a autêntica noção de purgatório. Vemos que é algo de muito lógico, fundamentado na Escritura e aprofundado pela tradição da Igreja. Possam os fiéis tomar consciência sempre mais viva da necessidade de perfazer seu purgatório na presente vida mesmo!
*BETTENCOURT, Estevão Tavares. Católicos perguntam: Purgatório. Editora Mensageiro de Santo Antônio. Pgs: 175 a 180
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