O Fundamentalismo

O Fundamentalismo:


(Texto de D. Estevão Bettencourt, osb, publicado na Revista: "PERGUNTE E RESPONDEREMOS", Nº 387 - Ano 1994 - p. 353



Em síntese: O Fundamentalismo é uma atitude presente, de modo especial, entre os protestantes norte-americanos e trazida para o Brasil. Diante dos progressos das ciências, que parecem revolver as proposições da fé, muitos protestantes se prendem a verdades fundamentais deduzidas da letra da Bíblia, rejeitando qualquer método crítico de estudo do texto sagrado. Isto torna tal corrente fortemente agressiva não somente à cultura moderna, mas também às demais correntes do Cristianismo, inclusive ao Catolicismo.
................

Os fundamentalistas baseiam suas atitudes na suposição de que os Estados Unidos são uma nação escolhida por Deus (em lugar da Inglaterra, que falhou) e essa nação deve estender sua fé religiosa protestante a toda a América Latina.

Não há dúvida, o Fundamentalismo se baseia sobre premissas errôneas, não levando em conta que o texto sagrado foi escrito mediante a tramitação de escritores orientais, distantes de nós e dotados de um expressionismo que não é o do homem contemporâneo.

Ouve-se dizer que vários dos Novos Movimentos Religiosos são fundamentalistas. Todavia nem a todos os cristãos é claro o que significa "Fundamentalismo". Eis por que dedicaremos as páginas seguintes à análise deste conceito tal como é vivido por correntes protestantes (sabemos que há também o Fundamentalismo católico, o judaico e o islâmico).

Origem do termo e do movimento

O vocábulo "Fundamentalismo" tem origem no protestantismo norte-americano da Segunda metade do século XIX e do começo do século XX. Com efeito; entre 1878 e 1918 formaram-se, dentro do protestantismo dos Estados Unidos, duas correntes: uma dita "fundamentalista" e a outra "modernista" ou "liberal". A diversidade entre uma e outra estava no modo de interpretar a Bíblia. Os fundamentalistas ensinavam que a Bíblia é obra de Deus, e não dos homens; Deus terá inspirado palavra por palavra a homens santos; por isto o texto sagrado há de ser tomado ao pé da letra, quer se trate de história, de poesia, quer de profecia, quer de apocalipse ... Qualquer tentativa de recolocar os livros sagrados em seu ambiente histórico e penetrá-los mediante o instrumental da lingüistica, da literatura antiga, da geografia, da arqueologia... é tida como concessão à pouca fé e à profanação do texto inspirado. Aos fundamentalistas se opunham os modernistas, professores da Universidade de Chicago, tidos como infiéis; recorriam aos subsídios das ciências profanas para entender a Bíblia e, além disto, se filiavam à corrente protestante liberal tendente ao racionalismo.

Para combater o modernismo, em 1910 os fundamentalistas Lyman e Milton Stewart, da Califórnia, financiaram a publicação de uma coleção de doze volumes redigidos pelos "melhores e mais ortodoxos estudiosos da Bíblia", sob a direção do evangelista A. C. Dixon e intitulada The Fundamentals: A Testimony to the Truth (Os Fundamentalistas: Um Testemunho à Verdade); desta obra derivou-se o nome de "cristãos fundamentalistas". Estes julgavam poder deduzir da Bíblia, com toda a certeza e sem necessidade de recorrer a ciências humanas, as seguintes verdades: a SS. Trindade, a Divindade de Jesus Cristo, a concepção virginal de Jesus Cristo, a Redenção pelo Sangue de Cristo, a ressurreição corporal do Crucificado, a sua Segunda vinda no fim dos tempos para julgar os homens e instaurar o Reino de Deus definitivo, a infalibilidade da Bíblia tomada ao pé da letra, a autenticidade dos milagres do Evangelho. Tais artigos de fé não o poderiam sofrer a mínima hesitação. - Conseqüentemente era rejeitada a Escola da História das Formas, que estuda o desenvolvimento dos conceitos e palavras da Bíblia com o cabedal das ciências modernas; esse método de trabalho era tido como deletério e contrário à veracidade da S. Escritura, pois ensina que Moisés não é o único autor do Pentateuco, que o livro de Daniel não data do século VI a.C., mas do século II a.C. ou da época dos Macabeus e de Antíoco IV Epifânio (175-164 a.C.), que o livro de Isaías encerra três compêndios de profecias datadas de séculos diversos ... Além do mais, os fundamentalistas, entendendo literalmente Gênesis 1,1-3,24, ensinavam (e ensinam) a criação do homem a partir do barro, a formação da mulher a partir de uma costela de Adão, não aceitando qualquer hipótese evolucionista; em 1925 promoveram em Dayton Tennesee "o processo dos macacos" contra o biólogo J. T. Scopes, que defendia a origem do homem por evolução da matéria viva preexistente. Para completar o quadro, seja mencionada a expectativa fundamentalista de iminente fim do mundo, de reinado de Cristo sobre a terra por mil anos (milenarismo). Na política foram muito ativos na década de 1950, aderindo a J. Maccarthy contra o trio satânico, constituído pelo liberalismo, o secularismo e o comunismo.

Conceituação de Fundamentalismo

O fundamentalismo tem semelhanças com o integrismo, o conservadorismo, o tradicionalismo, mas distingue-se destas correntes afins por sua origem histórica e sua atuação.

1. Podem-se atribuir dois significados ao Fundamentalismo (um mais amplo, outro mais restrito), como nota F. Galindo na obra El protestantismo fundamentalista. Una experiencia ambigua para la America Latina, pp. 136-138:

"Em sentido amplo, o Fundamentalismo é uma tendência atual das tradições judaica, cristã e muçulmana, que costuma manifestar-se em reações mais ou menos violentas contra as mudanças culturais. Os estudos de psicologia descrevem os seus adeptos mais zelosos como pessoas autoritárias, indivíduos que se sentem ameaçados num mundo dominado por potências malvadas que estão em permanente atitude de conspiração. Pensam segundo esquemas simplicistas e imutáveis; diante dos problemas de hoje são propensos a dar respostas autoritárias e moralizantes. Quando as mudanças culturais chegam a um ponto crítico, essas pessoas se agrupam em movimentos radicais dentro das suas próprias tradições religiosas.

Em sentido estrito, o fundamentalismo é uma modalidade do protestantismo norte-americano, uma "subespécie de evangelismo" (Marsden). Mais precisamente, do ponto de vista histórico, é um movimento protestante recente, que tem suas raízes no século XIX e se organizou no início do século XX; na década de 1920 envolveu-se em controvérsias com diversas denominações protestantes norte-americanos. Surgiu como reação a correntes sociais e teológicas, que os fundamentalistas designaram como liberalismo e modernismo, correntes tidas como ameaças ao Cristianismo tradicional ou como apostasia religiosa... Mais precisamente, o Fundamentalismo pode ser definido como um evangelismo reacionário frente a um evangelismo liberal ou social".

O Fundamentalismo estrito alimenta uma concepção pessimista do mundo e da história, tidos como irremediavelmente entregues ao pecado e fadados a uma catástrofe apocalíptica. Por isto conclui que o cristão não se deve ocupar com obras sociais, a fim de tentar melhorar um mundo que não pode ser melhorado, mas deve apregoar a conversão pessoal, para que cada cidadão possa escapar dos males iminentes que pesam sobre o mundo e assim participar do Reino milenar que Cristo há de instaurar após julgar este mundo.

2. Tal pessimismo se deriva de duas fontes principais: 1) a doutrina do luteranismo, que afirmava estar a natureza humana irremediavelmente deteriorada pelo pecado e propunha a Bíblia como único fundamento e fonte de fé; 2) o puritanismo e o pietismo dos "Pais Peregrinos" que, para fugir da intolerância da Comunhão Anglicana (High Church), embarcaram em setembro de 1620 a bordo do Mayflower em demanda da colônia de Massachusetts nos Estados Unidos, onde fundaram um protestantismo fervilhante e um tanto agressivo.

Esse protestantismo norte-americano assim instituído inspirava-se fortemente no puritanismo calvinista, que era acentuadamente pessimista: ensinava que o homem é incapaz de fazer o que seja, para salvar-se; pois isto é irrevogavelmente predestinado por Deus para salvar-se ou para condenar-se; o homem também seria incapaz de transformar o mundo e a sociedade; donde se seguia aceitação passiva da (des) ordem de coisas vigente como sendo disposta por Deus; daí, por exemplo, a manutenção da escravidão dos negros; esta teria sido decretada por Deus, que amaldiçoou Cam - de quem descenderiam os negros - e submeteu Cam e os seus descendentes a Sem e a Jafé (Jafé, do qual descendem os brancos, conforme errônea interpretação de Gn 9,21-27). Na verdade, os puritanos calvinistas que foram para a América, julgavam que a Inglaterra, a "nação eleita", o "novo Israel", escolhido por Deus para ser "um povo sujeito a Deus", falhara, de modo que tocava a eles ser essa nação santa sujeita a Deus; deviam criar uma nova terra de Canaã na nova Inglaterra; cumpririam assim os desígnios de Deus. Deste modo o puritanismo comunicou ao protestantismo norte-americano a convicção de ser "uma nação sujeita a Deus", até mesmo "a única nação cristã do mundo", portadora da maravilhosa missão de instaurar o Reino de Deus sobre a Terra e, de modo especial, estender a todo o continente americano (e, por conseguinte, à América Latina) "a excelência dos seus princípios divinos". Daí se seguia a conquista, por direito divino, dos territórios do Caribe, a tutela sobre Cuba, a anexão de Porto Rico e o predomínio econômico-político sobre todo o continente americano, segundo o princípio de Monroe: "A América para os americanos (do Norte)".

O pietismo, por sua vez, enfatizava a conversão pessoal e recusava toda discussão teológica que pudesse suscitar alguma dúvida de fé; daí a rejeição do espírito crítico-científico, dos princípios racionais de interpretação da Bíblia, e o apego à letra da Escritura Sagrada. Estas características do pietismo se tornaram particularmente notórias e acentuadas quando o protestantismo norte-americano teve que se confrontar com os estudos científicos da Bíblia realizados nas Universidades européias, principalmente na Alemanha, e com as teorias antropológicas evolucionistas.

Eis, pois, em que consiste o Fundamentalismo:

- interpretação literal da Bíblia
,
com desconfiança do instrumental da razão e da ciência;

- oposição ao mundo moderno, com as suas teorias evolucionistas, com os seus sistemas socialistas, com as suas tendências a conquistar o universo (obra satânica, segundo os fundamentalistas); toda essa projeção dos cientistas será destruída quando o Senhor vier julgar o mundo!

- oposição a todo tipo de ecumenismo.


As facetas do Fundamentalismo hoje

Verifica-se que o Fundamentalismo norte-americano, do qual acabamos de tratar, se tem fragmentado em facções de consistência duvidosa. Compreende, porém, duas grandes correntes:

- a neo-evangélica: afirma que os Estados Unidos ainda não foram devidamente evangelizados e precisam de forte movimento de ação religiosa e social, que lhes imponha o autêntico e único Cristianismo, a saber: o protestantismo;

- a corrente neo-fundamentalista: despreza todo compromisso social e temporal para apregoar um renascer espiritual (born-again) mediante intensa experiência religiosa.

Todavia ambas as correntes são contrárias ao ecumenismo, pois, sob o influxo do Calvinismo, não têm estima pelas outras denominações cristãs. São contrárias ao luteranismo, porque é religião de uma raça estrangeira, a alemã; contrárias ao anglicanismo, pois este depende de Londres e da Inglaterra, que os "Padres peregrinos" tiveram de abandonar por causa da sua intolerância; contrárias à Igreja Católica, porque esta é a Igreja dos estrangeiros, que acolhe raças inferiores (irlandeses, italianos, poloneses, negros...), ao passo que o autêntico americano é WASP (White = branco; Anglo-saxon = anglo-saxão; Protestant = protestante). Por estas mesmas razões, os fundamentalistas não fazem parte do Conselho Mundial das Igrejas, mas criaram o "Conselho Americano das Igrejas Cristãs".

Atualmente nos Estados Unidos são, de modo geral, fundamentalistas os pastores eletrônicos, que fazem sucesso no país, principalmente na classe média branca. Os pregadores eletrônicos exprimem a mentalidade dessa classe conservadora, puritana e nacionalista, convicta de que os Estados Unidos são a nação eleita, cuja missão é estender o Reino de Deus a todo o continente americano; a esta convicção se associam as teses fundamentalistas relativas à letra da Bíblia, à expectativa de fim do mundo apocalíptico, ao repúdio do comunismo e do ateísmo; acreditam no poder da oração para obter curas milagrosas em grande escala.

Os pregadores eletrônicos que, conforme algumas estatísticas, atingem setenta milhões de telespectadores ou radioouvintes, costumam pedir dinheiro, que eles recebem em elevadas quantias. Um exemplo, entre outros, seja o do famoso missionário televisivo J. Swaggart, que em 1988 atingia semanalmente 9.300.000 pessoas e tinha a receita de 140.000.000 de dólares; suas pregações visavam principalmente ao comunismo, ao humanismo secularista e à Igreja Católica, tidos como inimigos.

A corrente neo-fundamentalista não se contenta com sua atividade nos Estados Unidos; estende a sua influência à América Latina, onde já numerosas seitas estão atuando. Em nossos países, esse fundamentalismo assume característica fortemente anticatólica; os americanos que vêm para cá, alimentam, ao menos em seu íntimo, a persuasão de que estão desempenhando um papel providencial e, de certo modo, messiânico. São proselitistas e comunicam esse afã proselitista aos adeptos que vão conseguindo conquistas. Desejam ocupar o lugar da Igreja Católica, considerada como "Cristianismo viciado".

A penetração relativamente fácil desse Fundamentalismo em nossos países latino-americanos explica-se, em grande parte,

- pela ignorância religiosa de nossa gente; os católicos estão despreparados para enfrentar a capciosa e agressiva pregação dos novos arautos; não sabem o que professam em seu Credo;

- pela pobreza econômica e cultural de nossas populações, que se deixam facilmente atrair por promessas de curas e graças extraordinárias, assim como por "profecias relativas a intervenções drásticas de Deus, que porá ordem no mundo";

- pelo poderoso apoio financeiro que vem dos Estados Unidos e facilita o uso dos meios de comunicação, as viagens, as instalações de ordem escolar e hospitalar, o recurso à imprensa escrita, a divulgação de panfletos impressos nos Estados Unidos em diversas línguas;

- há quem julgue que certos regimes latino-americanos favorecem os fundamentalistas por causa do anticomunismo professado por estes.

Conclusão

Diz-se que em todo erro está latente um cerne de verdade. Na base deste princípio pode-se dizer que o Fundamentalismo faz questão de defender certos valores ameaçados pela cultura pluralística ou mesmo materialista do mundo atual. Os fundamentalistas querem preservar a identidade cristã inconfundível na sociedade contemporânea.

Todavia, ao defender tais valores, o Fundamentalismo se mostra cego, pois pretende ignorar que a Bíblia foi escrita segundo trâmites humanos, ou seja, por homens de épocas recuadas, dotados de recursos de expressão muito diversos dos do homem moderno. É esta convicção que justifica - ou mesmo torna obrigatório - o estudo científico das Escrituras, com recurso às ciências auxiliares (lingüística, história, arqueologia, paleografia, papirologia ...). Ignorar os gêneros literários e o procedimento dos antigos escritores é fechar-se ao mundo da Bíblia e à sua mensagem, em vez de cultivar fielmente a sua doutrina. Em última análise, a recusa de reconhecer os moldes humanos da Palavra de Deus é, indiretamente, a recusa do próprio mistério da Encarnação, pois na plenitude dos tempos o Verbo de Deus falou aos homens mediante a natureza humana assumida no seio de Maria Virgem em terra oriental, dentro do quadro histórico e geográfico da Palestina.

A propósito do Fundamentalismo escreveu a Pontifícia Comissão Bíblica num relatório datado de 18/11/1993:

"O Fundamentalismo recusa admitir que a Palavra de Deus inspirada tenha sido expressa em linguagem humana e haja sido redigida, sob a inspiração divina, por autores humanos cuja capacidade e cujos recursos eram limitados. Por isto, tende a tratar o texto bíblico como se fora ditado literalmente pelo Espírito e não chega a reconhecer que a Palavra de Deus foi formulada em linguagem e fraseologia condicionadas por determinados modos humanos de pensar presentes nos textos bíblicos ... O Fundamentalismo insiste também, de modo indevido, sobre a inerrância dos pormenores dos textos bíblicos, principalmente quando se trata de fatos históricos ou de pretensas verdades científicas... O Fundamentalismo assim esvazia o apelo lançado pelo próprio Evangelho.

O Fundamentalismo, além disto, leva a grande estreiteza de vistas: tem como conforme à realidade, porque contida na Bíblia, uma cosmologia antiga superada, o que impede o diálogo ou uma concepção mais aberta das relações entre cultura e fé. Baseia-se sobre uma leitura não crítica de alguns textos da Bíblia para confirmar idéias políticas e diretrizes sociais marcadas por preconceitos, por exemplo, racistas, totalmente contrários ao Evangelho".

O Fundamentalismo vem a ser perigoso, porque dá a impressão ilusória de que as pessoas necessitadas de respostas para seus problemas as possam encontrar interpretando a Bíblia ao pé da letra. Na verdade, a Bíblia não responde diretamente a todos os problemas humanos; ela apresenta não raro princípios gerais, dos quais cada qual deverá tirar conclusões precisas. Em nossa época, tão angustiada e atormentada por interrogações sobre o futuro, muitas pessoas sentem a necessidade de uma orientação precisa e segura, e imaginam poder encontrá-la na Bíblia; os sectários, como as Testemunhas de Jeová, exploram o texto sagrado prometendo intervenções drásticas de Deus que satisfazem aos anseios de solução alimentados por muitos dos nossos contemporâneos. Tal abuso da Bíblia é condenável. "A letra mata, o espírito vivifica", diz São Paulo (2Cor 3,6).

Como quer que seja, os fundamentalistas lembram aos fiéis católicos a exigência de guardarem a sua identidade, sem deixar de responder às indagações e interpelações do mundo contemporâneo.

Este artigo muito deve ao Editorial de La Civitá Cattolica 1994 II, pp. 3-16.

Nenhum comentário:

Arquivo