Conta-nos São Mateus no seu Evangelho que, após a partida dos Reis Magos e perante o desconhecimento da identidade do Menino Rei que tinha nascido em Belém e eles tinham vindo adorar, Herodes temeroso e furioso mandou matar todas as crianças do sexo masculino com menos de dois anos.
É um crime do poderoso rei Herodes que não se encontra registado para além dos Evangelhos, ao contrário de muitos outros e de menor dimensão e gravidade que ficaram registados na história, como a que nos deixou Flávio Josefo nas suas “Antiguidades Judaicas”.
Tal facto, e face ao horror do que é narrado por São Mateus, leva-nos a admitir que o acontecimento é uma construção teológica, uma narração interpretativa que visa integrar e assemelhar a vida e a pessoa de Jesus à grande e incontornável figura de Moisés. Jesus é o novo Moisés e portanto não só regressa do Egipto à terra de Israel como também escapa à vontade genocídica dos que governam o povo e têm poder para o extermínio.
A celebração festiva deste acontecimento na oitava do Natal exige por isso uma compreensão alargada da mesma, uma vez que é uma das festas mais antigas do ciclo do Natal e está inequivocamente ligada à figura de Jesus.
Antes de mais, e como já referimos, não podemos esquecer a aproximação que São Mateus faz da pessoa de Jesus à figura histórica de Moisés. Jesus é o novo Moisés, o instituidor da nova Lei e da Nova Aliança, e por isso em alguns episódios da vida de Jesus há referências à vida e actuação de Moisés. Neste caso particular da matança dos inocentes, mas também no momento em que Jesus sobe ao monte para proclamar as Bem-Aventuranças, o novo código de conduta do novo povo de Deus, à semelhança do que tinha acontecido no Monte Sinai.
Por outro lado a morte destes inocentes aparece como uma prefiguração da morte inocente de Jesus na cruz. Tanto as crianças como Jesus são vítimas do ódio, do desejo de poder, e portanto estes meninos participam antecipadamente do sacrifício de Jesus. Sem o saberem são as primeiras vítimas da violência do mal que se opõe ao mandamento do amor de Jesus, e simultaneamente as primeiras testemunhas da dimensão martirial do seguimento de Jesus.
Ao celebrar a sua memória, neste tempo festivo de Natal, a Igreja recorda e traz à nossa consciência todas as vítimas inocentes da história da humanidade, todos aqueles e aquelas que têm sofrido violência por causa das suas convicções, da sua fé, da sua cor de pele, às vezes até pela sua simples existência.
Tal memória e celebração deve também levar-nos a rever alguns dos nossos critérios e valores, alguns dos nossos comportamentos, que podem ser uma violência sobre inocentes, contrariando e desvirtuando desta forma o mandamento do amor que Jesus nos mandou viver e que a celebração do Natal nos coloca em evidência.
Ilustração: “Matança dos Inocentes”, de Girolamo Donnini, Fondazione Pietro Manodori.
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