A sociedade de nosso tempo tem a marca de uma carência: a dos valores femininos


No meu tempo de rapaz houve uma época em que, cansado de estudar as crateras da lua e os anéis de Saturno, passei a interessar-me pela avicultura. E, como sempre misturei às coisas mais práticas um pouco de teoria, comecei por munir-me de um tratado. Ora, esse tratado que então adquiri, começava por essas inacreditáveis palavras: "A galinha e as aves domésticas em geral, tanto podem ser cuidadas por um homem como por uma mulher".

Naquele tempo o autor do tratado pareceu-me doido. Assentei comigo mesmo que o era, e que não oferecia grande segurança nos finos problemas de alimentação, do choco e da gosma, um livro que começava com tão colossal quão inútil distinção. Deixei o livro, e poucos meses depois deixei os ovos.

Hoje, entretanto, não sei por que misterioso trabalho da memória, voltou-me aquela primeira frase do avicultor e de repente, descobri-lhe a sabedoria que me escapara na mocidade. Ou então, usando da relatividade, eu diria que o deslocamento de tempo, a modificação das idéias e costumes, acabaram por transformar em sábio o que naquele tempo era insano.

Senão, vejamos. Dizia aquele autor que a galinha pode ser cuidada por um homem ou por uma mulher. Ora, quem diz isto, é porque sabe, e deixa subentendido, que há outras coisas outras atividades, em que não é indiferente o sexo. Ainda mais, o que parece hoje digno de nota naquele texto é o ar, digamos assim, de surpresa, de quase admiração com que o autor reconhece a existência de um gênero de atividade em que a mulher e o homem possam se desempenhar com igual proficiência. Em outras palavras, o que ele dizia lá no tratado de avicultura, podia ser formulado assim: «A mulher e o homem são terrivelmente diferentes; mas apesar disto podem ambos cuidar de galinhas».

É claro que a sabedoria que existe naquele texto, ou que eu porventura lhe empreste, está toda contida na primeira parte da proposição: a mulher e o homem são de fato diferentes. Ambos podem fazer certas coisas, como por exemplo criar galinhas, mas vou agora mais longe que aquele sutil avicultor, e começo a pensar que, mesmo nessa simples atividade, o homem e a mulher não terão o mesmo estilo em avicultura. Ao contrário, na menor das coisas que façam, ficará a marca dos dedos que a fizeram, e como a diferença do sexo vai até a ponta dos dedos, resulta que ficará na coisa cuidada a marca de quem cuidou, homem ou mulher.

O ponto onde quero chegar, com essas considerações que roçam pelo delírio, é o seguinte: devemos acentuar a diferença, ao menos como tática de argumentação, porque um dos vícios de nosso tempo consiste precisamente em procurar a simplificação da uniformidade. A desordem de nosso tempo consiste em tender para o amálgama, para o informe, para a massa, para a sociedade sem classe, para um mundo sem limites, para uma vida sem regras, para uma humanidade sem discriminações.

[...] Só é possível pintar um belo quadro porque o vermelho é diferente do azul; só é possível tocar uma bela música porque há certa consonância nos acordes de quinta e certa dissonância nos acordes de sétima. [...] A tendência moderna é de atenuar as diferenças. Imaginem o que seria de nós se, por exemplo, os bombeiros hidráulicos resolvessem tornar-se, o mais possível, semelhantes aos avicultores; ou reciprocamente, se os avicultores tentassem trazer para os galinheiros a técnica da solda e do desentupimento. É claro que ao cabo de poucos meses não teríamos nem ovos nem água. Uma sociedade humana não pode dispensar o bombeiro hidráulico, nem o avicultor. Uma sociedade humana, passavelmente organizada, não pode sequer tolerar a idéia de que um cano de chumbo e um ovo sejam aproximadamente a mesma coisa.

Há circunstâncias muito especiais em que todas as pessoas de uma certa comunidade são chamadas a tarefas semelhantes. Nessas circunstâncias triunfa uma certa uniformidade. Trata-se, por exemplo, de um incêndio generalizado? Todos devem acorrer com mangueiras, extintores, areia. Trata-se agora de uma devastadora epidemia? Todos devem trazer sua contribuição de emergência para debelar o flagelo. Trata-se enfim de uma guerra? Todos devem oferecer seus préstimos para a mais breve e decisiva vitória.

Quanto mais nítido e mais próximo é o fim, mais homogênea se torna a necessária contribuição de todos. Mas mesmo nesses casos de fins próximos e nítidos, mesmo na fome, na peste e na guerra, a cooperação verdadeiramente eficaz tem o cunho de organicidade que se constitui pela unidade na diversidade. O concerto dos atos humanos só tem verdadeira ordem e harmonia quando realiza a união de coisas diversas. Vejam na guerra como é bom que existam homens com aptidões diferentes. Vejam no incêndio que os bombeiros, apesar dos uniformes, não são uniformes. Seus gestos, suas atitudes, seus instrumentos, variam tanto como se ali estivessem representando um feérico e harmonioso bailado do fogo. Vejam também na peste que os homens se dividem, tratando estes dos vivos enquanto aqueles cuidam dos mortos.

Ora, o funcionamento normal de uma sociedade, que inscreve todas as vidas e todos os problemas de todas as vidas, é mil vezes mais complexo do que o incêndio, a peste e a guerra, a normalidade é mais rica e mais difícil do que a anormalidade; e o problema social, nas mais intrincadas situações, deve ser tratado com os métodos, os resguardos, as atenções, a harmonia que a normalidade exige. Por isso, mais do que nas situações anômalas, o problema social dos tumultuosos tempos de paz devem ser conduzidos dentro do concerto das aptidões diferentes. E, quanto mais infantil for a criança, e quanto mais mulheril a mulher, e quanto mais varonil o homem, tanto melhor realizaremos em cada situação concreta a ordem, cambiante mas verdadeira, que é o fundamento da felicidade dos povos. O bem, a perfeição da sociedade, está na infantilidade da infância, na feminilidade da mulher, na masculinidade do homem.

O concurso que as mulheres têm trazido ultimamente, lamento dizê-lo, tem mais a marca da uniformidade do que o cunho autêntico da organicidade. Elas vieram ao nosso encontro. A última guerra viu mãos femininas nos tornos mecânicos e no controle dos aviões de bombardeio. E essa situação ainda continua. Elas vieram ao nosso encontro, mas o seu concurso tem sido apenas numérico, quantitativo, mecânico. Vieram ao nosso encontro como pessoas, como braços, como cabeças, mas não vieram como mulheres. O coro das vozes engrossou, mas não se tornou mais harmonioso. O conjunto de gestos se multiplicou, mas não se tornou mais ordenado. Vieram ao nosso encontro para fazer as mesmas coisas. Com os mesmos gestos.

E, se vieram fazer o que nós fazemos, é forçoso convir que se declararam derrotadas naquilo que as diferencia de nós. Se adotaram os nossos gestos, forçoso é convir que uma tal capitulação não merece, senão à custa de uma ginástica verbal o nome de emancipação. Lembro aqui uma passagem de Chesterton em que ele dizia que o tigre pode emancipar-se das barras da jaula, mas não pode emancipar-se das barras da sua pele tigrina.

O mundo, com essa contribuição da mulher, arrisca-se ao mais terrível dos cataclismas: a ficar reforçado na quantidade, e mutilado na qualidade. Imaginem que pobre música seria aquela em que as flautas andassem constantemente uma oitava acima dos fagotes a lhes imitar todos os contornos melódicos. Seria justo falar na grande emancipação das flautas?

Pois o que eu quero dizer é que a famosa emancipação da mulher é qualquer coisa como andar sempre uma oitava acima de nossos timbres masculinos. Dizem as nossas mesmas frases, mas em falsete.

[...]  É evidente que estou desagradando. Mas por favor não imaginem que eu deseje prender as mulheres em casa ou recusar-lhes o concurso na batalha do mundo. Não é esta a minha idéia. O que reclamo não é a impertinência; é a verdadeira contribuição.

Há uma mobilização que se torna urgente, e que deve abranger a todos. Mas essa mobilização é essencialmente diferente daquela dos tempos da guerra. Todos são chamados. Mas são chamados a ficar onde estão, sendo o que são. É uma esquisita mobilização em que cada um deve ficar exatamente onde está. E nesta esquisita mobilização, que quase seria melhor chamar de imobilização, o que é pedido à mulher é que seja mulher.

Na verdade, o que estamos precisando urgentemente é de uma chuva de santos. A liturgia dos tempos do Advento anuncia o Salvador que virá do céu como uma chuva. O que nós precisamos, no ressequido chão de nossa cultura e de nossos costumes, é de um bom sistema de irrigação que espalhe na terra das almas essa água do céu. Precisamos de muitos santos. Ora, está provado que a mulher, nessa divina aventura, vai mais longe do que nós outros, os fátuos conquistadores do mundo; e está provado também, por Leon Bloy, que a mulher, quanto mais santa, é mais mulher.

[...] Um romancista medíocre escreveu há tempos a história do que ele chamava as mulheres sem homens. Hoje num sentido diverso, pensando mais no problema cultural do que nos desajustamentos sexuais, poderíamos escrever a triste história dos homens sem mulher.

Esse é o traço que infelizmente se acentua em nossa civilização, e quem o diz, e muito bem dito, é uma mulher. Gertrud Von Le Fort, no seu pequeno livro, A Mulher Eterna, diz que o mundo moderno está fazendo a dolorosa experiência de uma cultura de valores masculinos. Eis as suas palavras: "A cultura exclusivamente masculina não se contenta de excluir todos os traços femininos para caracterizar as épocas em que impera. Pior do que isto, tal cultura substitui a fé nas potências escondidas pela confiança exclusiva no que se vê: a força, no domínio da matéria; a publicidade, no domínio do espírito. E ainda mais, ela exagera as propriedades masculinas e deforma os traços do homem-sem-mulher. A ausência de uma das partes da realidade provoca sempre – e isto é muito importante! – uma alteração da imagem da outra".

E quais são esses traços deformados? Perguntamos nós.

Eu diria que, entre muitos, são dois os principais. O primeiro, como diz a mesma autora, é o gosto predominante pela visibilidade, a luta cruel pelo prestígio, as torvas manobras em busca do sucesso. O segundo, digo-o eu, é a recusa da doação, a incapacidade, cada dia maior, de se descobrir que há realmente mais alegria em dar do que em receber.

Mas vejam bem – e isto é muito importante!– que não pretendo dizer que esses traços de cabotinismo e de egoísmo sejam característicos da psicologia masculina normal. Não. O que digo é que esses são os traços cavados no mundo masculinizado negativamente, isto é, privado da necessária componente feminina. Serão, digamos assim, os indícios da nossa avitaminose.

Num sentido um pouco diferente do que sugere Gertrud Von Le Fort, eu diria que esta cultura está masculinizada, não pela predominância do masculino, mas pelo desfalque do feminino. Importa muito acentuar esse aspecto de carência para compreender bem que o retrato do homem-sem-mulher é uma triste caricatura do homem.

[...] Volto pois a dizer que o homem não pode viver sem a mulher. Transpondo para outro plano essas considerações, lembro que fora da Igreja não há salvação. Ora, a Igreja é feminina. Logo, sem a mulher não há salvação. E quando eu digo que a Igreja é feminina, não creiam, por favor, que esteja explorando indevidamente uma pura metáfora. É claro que há uma analogia, mas uma analogia que é mais do que uma metáfora. A Igreja é realmente feminina. Nos seus atributos, na sua virginal maternidade, a Igreja acompanha, na quarta dimensão de sua realidade mística, os traços da figura de Maria.

Descendo novamente ao plano da cultura, eu me atreveria a dizer que há um certo paralelismo e que aí também, como na vida das almas, o homem não pode viver sem a boa vitamina dos valores autenticamente femininos. Privado desse elemento o mundo se transforma num quartel ou num hospício. A sociedade de nosso tempo tem a marca de uma carência: a dos valores femininos. 

Gustavo Corção. Excerto de As Fronteiras da Técnica, Ed. Agir, Rio de Janeiro, 1955.

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