Tudo quanto atrai, subjuga, fascina os outros homens, eles desprezam-no: a riqueza, o prazer, a glória, a vida até. De bom grado optam por uma existência feita de contínuas privações, não raro abraçam a pobreza, a dor, a perseguição; por vezes preferem a morte antes que renunciar àquele mundo arcano no qual vivem. Justificam tão estranha conduta apelando sempre a uma experiência misteriosa e divina de que seriam favorecidos.
Iluminados, fanáticos, perseguidores de quimeras — ou então homens privilegiados, dignos de admiração e inveja? Mais ainda. Entre os místicos, muitos há que, renunciando a um esplêndido isolamento, trazem aos homens candente mensagem; formam adeptos, despertam imitadores, suscitam vastos movimentos espirituais. E a chama perdura e se renova através das vicissitudes do tempo. Sufocada aqui, ateia-se acolá. Na França do XVII século, inebriada pelo matematismo filosófico de Descartes, pela arte geométrica de Le Notre e de Mansard, eis que se acendem em cada província inúmeros focos de misticismo, como fortemente documentou Henri Bremond. Mais tarde, na mesma França sufocada pelo cientificismo que se jactava de apagar as estrelas, bastou que em Lisieux faiscassem centelhas místicas, para que o incêndio logo se alastrasse.
Como poderia o filósofo permanecer indiferente, quando até sólidos burgueses sentem-se-lhes abalar o granítico materialismo? Verdade é que o filósofo quase nunca tem alma acolhedora, em disponibilidade. Os fatos são obrigados a se amoldar à férrea rigidez do sistema. Aos recalcitrantes nega-se até mesmo o direito de existir: são friamente desconhecidos.
Donde as atitudes diversas — e por vezes desconcertantes — dos filósofos em face do fenômeno místico.
Alguns, de tendência psicologista, apressam-se em identificar os místicos aos dementes e não mais cogitam no assunto. Outros, de pendor racionalista, afetam uma atitude protetora na qual entra não pouco desdém; na melhor das hipóteses serão os místicos considerados qual desasados pré-filósofos procurando às apalpadelas e a muito custo aquelas luzes que uma "filosofia do espírito" qualquer intelectualismo idealista lhes proporcionaria sem maior esforço. Em compensação, pensadores de índole empirista, para quem mais vale um fato do que um argumento, encaram o misticismo com simpática e até com franca admiração; assim na América os dois filósofos de Harvard: W. James e, sobretudo, W.E. Hocking; na Alemanha R. Otto; na França H. Bergson.
Adotaremos aqui uma atitude de incondicional respeito aos fatos. Afigura-se-nos quase pueril o negar ou refutar uma experiência. Sem dúvida, não basta constatar, senão é mister interpretar. Todavia, não convém a uma interpretação correta pautar-se por teorias pré-concebidas, nem devem os fatos sofrer um tratamento dialético que os esvazie de toda especificidade.
O desejo de ser objetivo levará necessariamente o filósofo a empreender um trabalho de discernimento: essas experiência denominadas místicas, que surgem no seio de religiões tão diversas — e até, por vezes, fora de qualquer religião — em meios e épocas tão distantes, serão porventura manifestações da mesma atividade, ou, pelo contrário, essencialmente diferentes, apresentando embora semelhanças mais ou menos superficiais?
Um estudo diferencial completo da experiência mística ultrapassa de muito o âmbito dum artigo de revista. Restringiremos pois a pesquisa a dois pontos atualmente mais controvertidos, porque mais obscuros: procuraremos discernir filosoficamente1 a experiência mística cristã do misticismo patológico e do misticismo neo-platônico.
Com efeito, alguns alienistas incautos têm identificado certos delírios de coloração religiosa, por eles observados, com os fenômenos místicos dos maiores santos cristãos, do outro lado, alguns filósofos hão apresentado os nossos místicos como adeptos — conscientes ou não — do neoplatonismo ou, pelo menos, têm sustentado que é, de fato, a mesma experiência fundamental, que se vêm cristalizar nas fórmulas de Plotino, e nas de S. João da Cruz. Tentaremos portanto averiguar se o delírio místico, o misticismo filosófico, o misticismo cristão são outras tantas experiências irredutíveis ou não. Seguiremos um método decididamente a posteriori: não partiremos de considerações teóricas sobre a natureza e ainda menos sobre o valor dos respectivos fenômenos; assumiremos como "hipótese de trabalho" que eles são reais — ao menos como vivências psicológicas; indagaremos tão somente se apresentam caracteres diferenciais, observáveis pelo filósofo.
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O discernimento filosófico da experiência mística (I)
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