Por que voltar à caverna?

No conhecido mito da caverna de Platão, podem existir diversos motivos que levam o filósofo a querer retornar para a caverna e libertar os homens que lá permanecem acorrentados. Alguns desses motivos estão mais ou menos explicitados no próprio Livro VII em que a alegoria da caverna é descrita. Resumidamente, podemos elencar quatro motivos que levam Platão a justificar a atividade política do filósofo, em ordem de importância: a) imperativo de justiça; b) gratidão; c) treinamento; e d) “desagravo” a Sócrates.
Primeiramente, contudo, convém explicar o que Platão quer dizer com “voltar à caverna”. A volta à caverna é a alegoria do esforço do filósofo em fundar/refundar uma cidade baseada nas realidades vistas por ele à plena luz do sol. O filósofo tendo saído da caverna e contemplado os objetos em plena luz do sol, e não mais meras sombras como na caverna, passa a possuir conhecimentos muito superiores aos dos não-filósofos (os homens acorrentados). Esses conhecimentos o habilitam a dirigir superiormente os negócios da Cidade. Contudo, além disso, uma vez fora da caverna, o filósofo pode também, após um período de ambientação (i.e. esforço e estudo), ver o sol diretamente. Ou seja, o filósofo será capaz de “ver” com o “olho” da alma o próprio Bem. A contemplação do Bem traz ao filósofo a felicidade suprema e ele pode ficar tentado a não voltar à caverna, permanecendo fechado em si mesmo. É exatamente esse o sentido da surpresa de Glauco ao ouvir de Sócrates que os filósofos devem descer ao mundo vulgar: “Quê? Vamos cometer contra eles a injustiça de os fazer levar uma vida inferior, quando lhes era possível ter uma melhor?
  1. O motivo principal da volta do filósofo à caverna está na maximização do Bem. Tendo contemplado diretamente a Justiça, a Felicidade, o Bem etc., o filósofo inevitavelmente, por uma questão de coerência com a Idéia contemplada, deve esforçar-se para que todos seus concidadãos tenham acesso à Felicidade1 (entendida como contemplação de ideias e formas universais). Para isso, ele precisa descer ao mundo vulgar e tomar parte na vida cotidiana de sua Cidade, tentando, sempre que possível e mesmo arriscando sua vida, persuadir seus concidadãos a sair da caverna e contemplar as verdadeiras realidades. Dessa maneira, mais e mais pessoas gozarão da verdadeira Felicidade. É dessa maneira que o filósofo é justo.

  2. Adicionalmente, o filósofo deve voltar à caverna por uma questão de gratidão. Filósofos autodidatas estão isentos do dever de gratidão e podem viver isolados, sem ter obrigação moral em participar da vida pública de seu país. Mas todos aqueles filósofos que devem sua Ciência graças a outros têm, por dever de gratidão, a responsabilidade de compartilhar essa Ciência com os demais e de tomar parte nos negócios políticos de sua Cidade2. Para mais, a Ciência superior dos filósofos os torna indicados para exercer altas funções na Cidade.

  3. Um terceiro, e provavelmente menos importante, motivo para a volta à caverna, relaciona-se ao treino e preparação dos futuros dirigentes do Estado idealizado por Platão. Na Cidade-Estado idealizada por Platão, os altos cargos de direção seriam confiados àqueles cidadãos de ambos os sexos que tivessem demonstrado ser os mais aptos. A última etapa desse treinamento, conforme Durant (1959, p.49-50) consistia numa prova que seria uma descida à caverna. Aos 35 anos de idade, após absorver décadas de treinamento físico e intelectual, os futuros dirigentes retornariam ao mundo dos homens comuns e, durante 15 anos, conviveriam, trabalhariam e negociariam com não-filósofos. Após esses 15 anos na “caverna”, aos 50 anos de idade portanto, os que mais tivessem se distinguido em suas empreitadas ascenderiam automaticamente à casta dos dirigentes e fariam parte da élite dos reis-filósofos3.

  4. O quarto motivo tem um caráter um tanto irônico. Levando em conta que a República de Platão está mais para uma distopia tirânica, ao estilo do Admirável Mundo Novo de Huxley, pode-se ainda também dizer que o filósofo quer voltar à caverna para se vingar da Pólis que condenou Sócrates. Ironias à parte, é inegável que Platão tinha a morte de Sócrates em mente quando escreveu a República4. Assim, em certo sentido, a volta do filósofo à caverna e sua “coroação” como rei-filósofo podem também ser vistos como um desagravo e uma “vingança” pela condenação de Sócrates (Arendt, 1972, p.155), além de consistir numa justificativa plausível para a importância dos filósofos nos negócios públicos, conforme intentado pelo próprio Platão em Siracusa, sem sucesso.

Fica claro da leitura da República que, embora Platão veja a Teoria como sendo infinitamente superior à Prática, o filósofo tem o dever de atuar no mundo. A contemplação teórica é deleitosa em si mesma, mas o filósofo que conseguiu ver com o olho da alma o Bem e a Justiça não pode ficar indiferente à sorte de seus compatriotas. Precisa descer à caverna e tomar parte na vida pública de sua nação.


1Platão. A República, 519.
2Platão. A República, 520.
3Platão. A República, 539.
4Platão. A República, 517.


Arendt, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva Editora, 2ed., 1972, 352p.


Durant, W. História da filosofia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 10 ed., 1959, 475p.


Plato. The Dialogues of Plato. Trad. de Benjamim Jowett. Great Books of the Western World, vol. 7, Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1955, 814p.


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