O Estado
democrático permite-nos que o conflito não seja o fim, mas lugar de permanência
onde, oportunamente, a consensualização permitirá o avanço da comunidade
histórica. Este lugar de encontro só é possível graças à partilha de uma
história e de valores comuns, valores transversais a experiências étnicas,
culturais, ideológicas e religiosas distintas.
Para
Ricoeur esta tolerância exige que as bases das convicções se privem do que as
dinamiza em profundidade para que sejam disseminadas e enriquecidas.
Compreendendo a constatação de Ricoeur, parece-nos que será aqui que tocamos no
nervo caduco responsável pela nossa apatia axiológica: amputadas as raízes, desligando
os valores do seu lugar de nutrição, quedamo-nos com a pobreza da enunciação de
ideias abstratas sem fundamentação. Só as motivações profundas geram a empatia
e a adesão necessárias para a profusão dos valores.
Admitimos
que com este empenho e adesão surgem a obstinação e a inflexibilidade, e
contudo, sem aqueles, os valores são invólucros vazios, lugares de encontro
como gares de comboio, lugares de passagem imprescindíveis mas onde não se
vive, onde não se constrói vida. O reconhecimento de um bem abstrato como valor
universal, sem experiência testemunhal atributiva de profundidade, não vai além
da superficial experiência de um bem que concorre sentimentalmente com a
fruição de um quadro ou de um par de sapatos.
A
tolerância tem de ser cultivada e aprendida nesse campo onde estão os nossos
valores, devendo a tolerância ganhar corpo a partir da profunda experiência das
nossas convicções: os valores, ao serem amputados da sua raiz, são latão. Assim
o bem, o amor, o apoio ao desvalido, e outros de que nos lembremos,
desprendidos, desconectados, desligados da sua fonte, ao serem lançados na
praça pública para sua universalização, encontrarão somente o lugar de
derradeiro término por inanição.
O sentido por contágio
Hodiernamente,
o destino do indivíduo é disputado na relação entre produção e consumo, eixo
primacial da vida moderna. A racionalização do trabalho buscando a superação no
amanhã do feito de ontem, orientação que poderia lançar a odisseia humana num
périplo triunfante, é, curiosamente, o labirinto onde nos ameaçamos perder.
Esta organização, do todo calculado, estimado e projetado, elevando a eficácia
a imagem do Bem, leva-nos a uma progressiva desconexão com a experiência
societal de base e à entrada numa alienação diluente do real. Vamos padecendo
da ausência de sentido, perdendo o contato com o que nos transmite identidade,
com as raízes profundas da nossa axiologia e da nossa experiência comunitária.
Encontramo-nos
em comunidades de ligames mínimos, de contatos mínimos, em busca do menor grau
de fricção que permita a continuidade temporal, condenando ao fracasso reais ou
hipotéticas possibilidades da concretização de um encontro verdadeiro de
vontades e crenças. A exigência do reconhecimento do outro como igual implica o
desenvolvimento de uma consciência profunda da nossa identidade, fator que não
prescinde da necessidade de uma perspetiva de vida que ultrapassa o sabor e o
fragor do momento, que pede uma direção e se alimenta de uma experiência
atributiva de sentido.
Esta
experiência atributiva de sentido tem de ganhar corpo em comunidade, mas tem de
ser procurada individualmente, maturada, e expressa pela força que só a íntima
convivência com o campo mais profundo das nossas crenças pode gerar. Só aqui
pode o indivíduo encontrar as forças que o levarão a contagiar de sentido o
lugar que habita.
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