As flores desenraizadas – comentário ao texto Ética e Política II

 O nervo caduco


O Estado democrático permite-nos que o conflito não seja o fim, mas lugar de permanência onde, oportunamente, a consensualização permitirá o avanço da comunidade histórica. Este lugar de encontro só é possível graças à partilha de uma história e de valores comuns, valores transversais a experiências étnicas, culturais, ideológicas e religiosas distintas.
Para Ricoeur esta tolerância exige que as bases das convicções se privem do que as dinamiza em profundidade para que sejam disseminadas e enriquecidas. Compreendendo a constatação de Ricoeur, parece-nos que será aqui que tocamos no nervo caduco responsável pela nossa apatia axiológica: amputadas as raízes, desligando os valores do seu lugar de nutrição, quedamo-nos com a pobreza da enunciação de ideias abstratas sem fundamentação. Só as motivações profundas geram a empatia e a adesão necessárias para a profusão dos valores.
Admitimos que com este empenho e adesão surgem a obstinação e a inflexibilidade, e contudo, sem aqueles, os valores são invólucros vazios, lugares de encontro como gares de comboio, lugares de passagem imprescindíveis mas onde não se vive, onde não se constrói vida. O reconhecimento de um bem abstrato como valor universal, sem experiência testemunhal atributiva de profundidade, não vai além da superficial experiência de um bem que concorre sentimentalmente com a fruição de um quadro ou de um par de sapatos.
A tolerância tem de ser cultivada e aprendida nesse campo onde estão os nossos valores, devendo a tolerância ganhar corpo a partir da profunda experiência das nossas convicções: os valores, ao serem amputados da sua raiz, são latão. Assim o bem, o amor, o apoio ao desvalido, e outros de que nos lembremos, desprendidos, desconectados, desligados da sua fonte, ao serem lançados na praça pública para sua universalização, encontrarão somente o lugar de derradeiro término por inanição.
 O sentido por contágio
Hodiernamente, o destino do indivíduo é disputado na relação entre produção e consumo, eixo primacial da vida moderna. A racionalização do trabalho buscando a superação no amanhã do feito de ontem, orientação que poderia lançar a odisseia humana num périplo triunfante, é, curiosamente, o labirinto onde nos ameaçamos perder. Esta organização, do todo calculado, estimado e projetado, elevando a eficácia a imagem do Bem, leva-nos a uma progressiva desconexão com a experiência societal de base e à entrada numa alienação diluente do real. Vamos padecendo da ausência de sentido, perdendo o contato com o que nos transmite identidade, com as raízes profundas da nossa axiologia e da nossa experiência comunitária.
Encontramo-nos em comunidades de ligames mínimos, de contatos mínimos, em busca do menor grau de fricção que permita a continuidade temporal, condenando ao fracasso reais ou hipotéticas possibilidades da concretização de um encontro verdadeiro de vontades e crenças. A exigência do reconhecimento do outro como igual implica o desenvolvimento de uma consciência profunda da nossa identidade, fator que não prescinde da necessidade de uma perspetiva de vida que ultrapassa o sabor e o fragor do momento, que pede uma direção e se alimenta de uma experiência atributiva de sentido.
Esta experiência atributiva de sentido tem de ganhar corpo em comunidade, mas tem de ser procurada individualmente, maturada, e expressa pela força que só a íntima convivência com o campo mais profundo das nossas crenças pode gerar. Só aqui pode o indivíduo encontrar as forças que o levarão a contagiar de sentido o lugar que habita.


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