Na página inicial da ATEA (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos), Daniel Sottomaior lança seu show de ilusionismo, quase hipnótico. Milton Eriksson, um dos promotores da ressignificação, iria adorar. Para mim, é apenas um passatempo de busca de trucagens.
Como agnóstico, posso dizer com gosto que essa figurinha nem de longe me representa. E no dia em que eu precisar de representação deste nível, a coisa vai estar feia. E bota feia nisso.
Mas voltando ao texto, que foi publicado na Folha de São Paulo, sob o título “O fundamentalismo nosso de cada dia nos dai hoje”.
Segundo Ives Gandra, em recente artigo nesta Folha (“Fundamentalismo ateu”, 24/11), existe uma coisa chamada “fundamentalismo ateu”, que empreende “guerra ateia contra aqueles que vivenciam a fé cristã”. Nada disso é verdade, mas fazer os religiosos se sentirem atacados por ateus é uma estratégia eficaz para advogados da cúria romana. Com o medo, impede-se que indivíduos possam se aproximar das linhas do livre-pensamento.
Sottomaior afirma que “não é verdade” a afirmação de que “fundamentalistas ateus” estariam empreendendo “guerra ateia contra aqueles que vivenciam a fé cristã”.
Claro que é verdade, em todos os níveis. O ateísmo de Richard Dawkins é um ateísmo focado em retórica de ódio contra os religiosos. Neste texto, “A Retórica do Ódio – Parte 1 – O Enigma do Ódio” (aliás, preciso dar sequência a esta série), Sam Harris diz o seguinte: “Então, ridicularização pública é um princípio. Uma vez que você deixa de lado o tabu que é criticar a fé e exige que as pessoas comecem a falar com sentido, então a capacidade de fazer as certezas religiosas parecerem estúpidas fará nós começarmos a rir na cara das pessoas que acreditam aquilo que Tom DeLays, que Pat Robersons do mundo acreditam. Nós vamos rir deles de uma maneira que será sinônimo de excluí-los do nossos salões do poder.”
Só isso já refuta a simulação de inocência de Sottomaior. Lembremos a afirmação “não há guerra de ateus contra religiosos”. Com certeza há. Uma guerra cultural. E mostrei provas.
Agora, a coisa começa a ficar mais divertida, e realmente confesso que ele se empenhou em combinar vários truques de uma vez:
É bom saber que os religiosos reconhecem o dano causado pelo fundamentalismo, mas resta deixar bem claro que essa conta não pode ser debitada também ao ateísmo.
É aqui que vou começar a mostrar a vocês o que é CONTROLE DE FRAME, e como essa é uma técnica que os esquerdistas DOMINAM, e que, se quisermos esmagá-los em debates, temos que dominar também. (Não significa que tenhamos que falsificar conceitos como eles fazem, mas sim saber demolir cada tentativa de falsificação e colocá-los em seus devidos lugares)
O Controle de Frame é a arte de DOMINAR o uso das ressignificações a seu favor. Simples assim. E as ressignificações são “métodos utilizados em neurolingüística para fazer com que as pessoas possam atribuir ‘novo significado’ a acontecimentos, fatos ou conceitos pela mudança de sua visão de mundo.”
A essência do texto do Sottomaior é o uso da ressignificação. E ele fará várias vezes.
Vejamos. Ele tenta modificar o fato real, que é o “ataque de vários neo ateus a religiosos” (o que já está mais do que comprovado) e ressignifica para “fazer os religiosos se sentirem atacados por ateus”. Neste caso, seria o Ives Gandra o culpado.
Se aceitarmos a idéia de Sottomaior, ele controlou o frame. E está obtendo benefício com isso.
No caso de alguém refutar o texto dele na Folha, bastaríamos reverter a tentativa dele controlar o frame. Basta mostrar o fato dizendo que não é preciso “fazer religiosos se sentirem atacados por ateus”, e daí em diante só mostrar as evidências de que os ataques ocorrem.
Mas existem mais tentativas dele, como abaixo:
Os próprios simpatizantes dos fundamentos do cristianismo, que pregam aderência estrita a eles, criaram a palavra “fundamentalista”. Com o tempo, ela se tornou palavrão universal. O que ninguém parece ter notado é que, se esses fundamentos fossem tão bons como querem nos fazer crer, então o fundamentalismo deveria ser ótimo!
Nova tentativa de controlar o frame!
Notem que ele pegou a expressão “fundamentalista”, que é aderência aos princípios fundamentais, e RESSIGNIFICOU para o termo “fundamentalista” usado por anti-religiosos para definir aqueles “fanáticos por uma crença a ponto de atacarem o outro grupo”.
Até o momento temos o significado original de fundamentalismo, que pode ser aplicado tanto a ateus quanto a religiosos, que é “aderência estrita a fundamentos”. Ou seja, pode-se estar aderente ao fundamento da não existência de Deus ou até da dúvida da existência em Deus, ou aderente ao fundamento da existência de Deus, ou mesmo da ressurreição de Cristo. Quer dizer, basta existir um paradigma, e aderência a este paradigma, para alguém poder ser fundamentalista. Isso no sentido ORIGINAL da expressão!
Entretanto, o sentido pejorativo, aquele usado por neo ateus, foi USADO DA MESMA FORMA por Ives Gandra.
Marotamente, Sottomaior finge não perceber isso, e começa a tentar confundir o leitor.
Veja a sequência:
Reconhecer o fundamentalismo como uma praga é dizer implicitamente que a religião só se torna aceitável quando não é levada lá muito a sério, ideia com que enfaticamente concordam centenas de milhões de “católicos não praticantes” e religiosos que preferem se distanciar de todo tipo de igrejas e dogmas.
Uau! Nova tentativa de controlar o frame.
Para facilitar, vamos utilizar duas siglas aqui: S1, para significado original de fundamentalismo, e S2, para significado pejorativo.
Em S1, temos o significado de alguém aderente a determinados princípios. Em S2, um grupo que é aderente aos seus princípios de maneira tão doentia a ponto de odiar qualquer outro que não é aderente a ele. Ou seja, islâmicos que odeiam cristãos, cristãos que odeiam islâmicos, evangélicos que odeiam católicos, católicos que odeiam evangélicos e… ateus que odeiam religiosos. Simples assim.
O truque de Sottomaior é exatamente o seguinte: no momento em que Gandra atribui aos neo ateus o significado S2, ele finge que na verdade o significado era o S1, que é a simples aderência a uma crença. E então simula que Gandra “reconhece o fundamentalismo como uma praga”. A partir daí só surgem desonestidades como fingir que o religioso teria dito que “religião só se torna aceitável quando não é levada muito a sério”.
Mas na verdade Ives Gandra não criticou o fundamentalismo S1, somente S2.
E notem que Sottomaior não cansa das trucagens, logo a seguir:
Já o ateísmo é somente a ausência de crença em todos os deuses, e não tem qualquer doutrina. Por isso, fundamentalismo ateu é um oximoro: uma ficção ilógica como “círculo quadrado”.
Se vocês observarem, ele tenta controlar o frame a favor dele sempre ressignificando. Espero que, na quarta vez em que mostro o truque em um único texto, vocês já tenham pego o “jeitão” da coisa. Não há algo de intelectual a ser analisado no discurso neo ateu, e sim um exercício de puzzle no qual temos que achar os truques por parágrafo. Não há parágrafo sem truques extremamente desonestos.
Veja, com atenção, esse exemplo sintomático: ele tenta enganar o leitor dizendo que ateísmo é “ausência de crença em todos os deuses” e “sem qualquer doutrina”. Mas Gandra não se referia “aos ateus”, mas aos “ateus militantes”. Esses é que foram chamados de fundamentalistas ateus.
Ora, se ateísmo é só “ausência de crença em todos os deuses”, uma ressignificação igualmente desonesta poderia ser feita para dizer que teísmo é só “ausência de crença em no discurso central ateísta”. Logo, duas expressões “ausência de crença” poderiam ser similares e todo mundo então não teria CRENÇA ALGUMA, bastaria ressignificar.
Vejam a que nível ele chega.
Mas, quebrando a tentativa de controle de frame dele, o fato é que é ateísmo é tanto “ausência de crença em deuses” como teísmo é “ausência de crença no centro do discurso neo ateu”. Uma maneira ressignificada e desonesta de dizer “eu não acredito em Deus” e, respectivamente, “eu acredito em Deus”.
Que neo ateus tenham feito tal ressignificação e a utilizem como mantra já é sintomático de que neo ateus são sim fundamentalistas do tipo S2, exatamente aqueles denunciados por Ives Gandra.
Vamos seguir:
Gandra defende uma encíclica papal dizendo que “quem não é católico não deveria se preocupar com ela”. No entanto, quando ateus fazem pronunciamentos públicos preocupa-se tanto que chama isso de “ataque orquestrado aos valores das grandes religiões”. Parece que só é ataque orquestrado se for contra a religião. Contra o ateísmo, “não se preocupem”.
Se existem vários grupos neo ateus juntos para tentar tirar crucifixos das repartições públicas, obviamente esse é um “ataque orquestrado”, e novamente Ives Gandra está correto, ao contrário de Sottomaior. Como não tem evidência de “inexistência de ataque orquestrado”, ele inventa um factóide, tentando simular que para Ives Gandra está ok “ataque orquestrado contra ateísmo”. Mas não existe nada disso no texto de Gandra.
Aqui não há ressignificações mais, e sim apenas uma mentira. É o tal negócio. Se neo ateu não faz truques, então apela para a mentira. Sempre é assim.
Mais:
Aparentemente, para ele os ateus não têm os mesmos direitos que religiosos na exposição de ideias.
Mais uma vez, ele tenta inventar uma intenção que não existe em Ives Gandra. Na verdade, neo ateus tem pleno direito de expor suas idéias. O que parece é exatamente o oposto. Sottomaior parece achar que os religiosos não tem o direito de expor suas idéias. Mesmo quando estes reconhecem fatos cabais, o de que ateus raivosos estão unidos contra a religião e, por isso, é natural que os religiosos se conscientizem disso.
Sigamos:
A religião nunca conviveu bem com a crítica mesmo. Já era hora de aprender. Se há ateus que fazem guerra contra cristãos, eu não conheço nenhum. Nossa guerra é contra ideias, não contra pessoas.
Mas o que vimos é exatamente o contrário. É Sottomaior, neo ateu, que não está convivendo bem com a crítica de Gandra, e escreveu um dos textos recordistas de desonestidades da Internet.
Desesperadamente, ele diz que “não conhece nenhum” ateu em guerra contra cristãos, o que é evidência anedota, e, pior, vindo da parte interessada. É um discurso tão válido quanto o Nem, traficante preso no morro, dizer que “não vi nenhum tráfico de drogas ocorrendo aqui”. Sinceramente, Sottomaior, está cada vez mais fácil te desmascarar!
Em seguida, ele diz que a guerra é “contra idéias”, não “contra pessoas”, mas o discurso de Sam Harris, apoiado em uníssono pelos neo ateus, diz exatamente o oposto. A ridicularização é “contra pessoas ” para “tirá-las dos círculos do poder”. Portanto, a alegação de inocência de Sottomaior vai para o ralo de novo.
O show não pára:
Os ateus é que são vistos como intrinsecamente maus e diuturnamente discriminados pelos religiosos, não o contrário. Existem processos movidos pelo Ministério Público e até condenação judicial por causa disso.
Não existem evidência de que “ateus são vistos como intrinsecamente maus” em maior quantidade do que “teístas são vistos como intrinsecamente maus” pelos grupos adversários. Aqui, é alegação sem evidências. Não serve.
E o fato de “processos movidos” ou “condenação” não dá nenhuma evidência de que exista maior discriminação de religiosos contra ateus do que de ateus contra religiosos.
Quer dizer, o ceticismo já não existe mais em Sottomaior… Ele vai alegando, alegando, inventando factóides, e resta a ele torcer para não ser questionado. Para ele, é uma pena que estou aqui…
Mais:
O jurista canta loas ao “respeito às crenças e aos valores de todos os segmentos da sociedade”, mas aqui também pratica o oposto do que prega: ele está ao lado da maioria que defende com entusiasmo que o Estado seja utilizado como instrumento de sua própria religião.
Aqui é de novo tentativa de ressignificação. O fato de preservar os valores da religião majoritária, e que é base cultural para um país, NÃO IMPLICA usar o estado como instrumento da religião. Pelo contrário, a preservação de valores não interfere no estado laico. *bocejos*
Agora ele apela ao drama:
Para entender como se sente um ateu no Brasil, basta imaginar um país que dá imunidade tributária e dinheiro a rodo a organizações ateias, mas nenhum às religiosas; que obriga oferecimento de estudos de ateísmo em escolas públicas, onde nada se fala de religião. Um país que assina tratados de colaboração com países cuja única atividade é a promoção do ateísmo; cujos eleitores barram candidatos religiosos; que ostenta proeminentes símbolos da descrença em tribunais e Legislativos (onde se começam sessões com leitura de Nietzsche) e cuja moeda diz “deus não existe”.
É nesse ponto em que eu vejo que diferença fez eu ter aprendido na infância que é importante ter VERGONHA NA CARA. Além disso, ter DIGNIDADE e HONRA.
Sottomaior parece não entender características assim. Meu caráter, por exemplo, mostraria que se eu fosse teísta e estivesse em um país de cultura ateísta, NÃO IRIA DAR A MÍNIMA. O raciocínio de alguém minimamente digno seria: “é a cultura deles”.
Estou em um hotel esses dias, e vi uma Bíblia aqui. Não fiquei choramingando pelos cantos e pensei: “é a cultura da região”.
Eu não sou nem ateu e nem teísta, e não me incomodo em ver pessoa cantando músicas religiosas em um país de cultura cristã, da mesma forma que não me incomodo em ver uma moeda dizendo “Deus não existe” em um país de cultura ateísta.
Se ele se sente mau em viver em um país de cultura cristã, isso é um PROBLEMA DELE, que teria sido resolvido com uma educação de qualidade oferecida pelos pais dele. Com uma educação baseada em valores de qualidade, ele talvez aprenderia a respeitar a cultura dos outros, principalmente se esta cultura fornece as bases de um país.
Mas é uma ilusão achar que esquerdistas entendem o significado de coisas como honra e dignidade.
A conclusão dele não poderia ser mais pífia:
E depois os fundamentalistas que fazem ataque orquestrado somos nós.
Claro que é um fundamentalista. Mas não apenas o fundamentalista de aderência aos princípios do ateísmo. Sottomaior é fundamentalista do pior tipo, do tipo a que Ives Gandra se referia.
Isso não é um problema dos ateus, mas sim um problema dos neo ateus e humanistas seculares.
Sottomaior tem tamanho ódio dos religiosos que mente sem parar e executa truques em ritmo de bate-estaca (como mostrei aqui, só de ressignificação foram umas 5 ou 6 tentativas, todas absurdamente desonestas).
E, com a maior cara de pau, ainda tenta se fazer de “coitadinho” ou “vítima de opressão”. Opressão esta que não existe. Pois, se existisse o mínimo traço de opressão a “neo ateus”, Sottomaior teria tomado uma cuspida no olho, no mínimo, por ser tão desonesto.
Mas essa desonestidade patológica que esmiucei neste texto é um sintoma óbvio que ele é um fundamentalista. Do tipo mais perigoso.
Fonte: Luciano Ayan
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O fundamentalismo doentio de Daniel Sottomaior
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