A ética do hamburguer

A ética do hamburguer:

Havia um hamburguer a mais no tabuleiro. Contámos de novo. "Está a mais, está" - insisti. Conferimos o recibo: "de facto, só pedi dois" - disse ele. "Oh, deixa lá. É oferecido" - escapou-me, sem pensar. E uma cadeia de pensamentos se desdobrou na minha cabeça: "afinal 'tamos aqui à espera há não-sei-quanto-tempo, e o McDonald's produz hamburgueres às toneladas, e não lhes faz diferença nenhuma, ninguém nota, ninguém sabe…" - mas naquela tarde escrevera um texto que falava de honestidade! Foi como se visse um touro à minha frente: um touro de verdade. Os pensamentos congelaram e todo o bulício à volta se dissipou, os empregados entraram em câmara lenta, na expectativa de uma decisão. "… é melhor dizer alguma coisa" - concluí baixinho, meio envergonhado. "É melhor dizer" - disse o meu amigo - "como é que se diz 'a mais' em italiano?". E enquanto esperávamos pela empregada, a consciência ainda teve tempo para me lembrar do meu hábito de devolver trocos quando errados a meu favor: "sabes? não é pelo valor do dinheiro, que às vezes não é quase nada; é pela marca que deixa na outra pessoa" - expliquei, como se não o tivesse esquecido instantes atrás. Quando ela veio, lá lhe dissemos: "scusa, hai messo un hamburguer in più…". Ela conferiu, sorriu e, para nosso espanto, nem hesitou: sem palavras, disse "ah, não faz mal". E subimos, satisfeitos, com as bandejas e o bónus, ao andar de cima. Mal sabíamos nós que a história ainda não acabara. É que, a meio do jantar, um sem-abrigo ligeiramente lavado e embriagado que andava por ali a cirandar aproximou-se e sentou-se connosco. O meu amigo ofereceu-lhe atenção. E o hambuguer. E enquanto o víamos deglutir aquele manjar, percebemos quão saboroso pode ser o receber e oferecer um hamburguer eticamente irrepreensível.

[Fotografia de Gilberto Correia - Olhares]

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