Acabei de achar uma pérola da Fé Católica. Um diálogo entre um Abade chamado Moisés e dois monges Cassiano e Germano. Eles falam sobre a vida de um monge (início, auge e morte). Um diálogo rico e cheio de ensinamentos que nos mostram como era a ascese dos primeiros cristãos. Vale muito a pena ser lido. Se preferir, copie o texto e vá lendo aos poucos. Repito: Uma riqueza para para a nossa fé.
Diálogo entre o Abade Moisés e os monges Cassiano e Germano
CASSIANO:
No deserto de Scete moravam os mais ilustres Pais de monges e de toda a perfeição. Entre todas aquelas exímias flores, rescendia de modo mais suave, tanto pela ascese quanto pela contemplação, o abade Moisés.
Desejoso de ser formado à sua escola, fui à sua procura no deserto, em companhia do santo abade Germano. Com este, desde os primeiros exercícios da milícia espiritual, vivi em tão estreita companhia, tanto no mosteiro como no deserto, que todos diziam, para significar a nossa amizade e comum propósito, que éramos um só espírito e uma só alma em dois corpos.
Juntos, rogamos com muitas lágrimas ao mesmo abade uma conversa de edificação. Bem conhecíamos o seu rigor e sabíamos que não consentia em abrir as portas da perfeição senão àqueles que a desejavam com fé e a procuravam de coração contrito. Pois não devia acontecer que a mostrasse a quem não a queria ou que só mornamente a desejasse, expondo, assim, a indignos, que as acolheriam com fastio, aquelas realidades necessárias que só devem ser reveladas a quem tem sede de perfeição, pois, do contrário, pareceria ele incorrer no vício de vanglória ou mesmo no crime de traição.
Cansado de nossos rogos, ele, afinal, começou a falar.
MOISÉS:
Toda arte e toda a disciplina tem um escopo, ou fim particular, e um “telos”, isto é, um fim próprio. É fixando neste os olhos, que o zeloso pretendente de qualquer arte sustenta, sem perturbação e de boa vontade, todos os trabalhos, perigos e prejuízos.
O lavrador, por exemplo, arrostando os raios ardentes do sol ou geadas e neves, infatigavelmente rasga a terra e, com o vai-e-vem do arado, amanha as glebas bravias. Assim fazendo, ele conserva o seu escopo, que é purgar a terra de todas as sarças e libertá-las de ervas daninhas, até que a torne, pelo seu trabalho, fina e solta como areia. Ele não espera conseguir de outro modo o seu fim, que consiste em searas copiosas e colheitas abundantes, para que possa, daí em diante, levar uma vida segura ou aumentar o seu patrimônio. De bom grado, esvazia o celeiro cheio de grãos e com instante trabalho os semeia nos sulcos amolecidos. Contemplando as futuras searas, ele não sente a diminuição de agora.
Também os que vivem do comércio, não temem os azares do mar nem se apavoram com qualquer perigo, quando, alçados pela esperança do vôo ligeiro, são provocados ao lucro, que é o seu fim.
O mesmo acontece com os que se inflamam com a ambição da carreira militar, ao divisar ao longe o seu fim, que são as honras e o poder. São insensíveis aos perigos e às mortes das campanhas e não se deixam abater pelos sofrimentos e riscos atuais, nem pelas aflições e guerras do momento, pois ambicionam a dignidade, que é o fim que se propõem.
Assim também, a nossa profissão. Ela tem igualmente o seu escopo e o seu fim próprio. Por este fazemos todos os trabalhos, sem cansaço e até com alegria. Para obtê-lo, não nos fatiga a privação dos jejuns, achamos prazer na lassidão das vigílias, não nos enfastia a contínua leitura e meditação das Escrituras, nem nos deixamos assustar pelo trabalho incessante, pela nudez e privação de tudo, nem pelo horror desta vastíssima solidão.
É, sem dúvida, por causa deste mesmo fim, que abandonastes o afeto dos pais e desprezastes a pátria e as delícias do mundo, atravessando tantas regiões para chegar até nós, homens rústicos e ignorantes, que vivemos na aspereza deste ermo.
CASSIANO:
Como insistisse em nossa resposta, dissemos que tudo isso tolerávamos por causa do reino dos céus.
MOISÉS:
Muito bem, disse ele, falastes corretamente sobre o fim. Mas, antes de mais nada, deveis saber qual é o nosso escopo, isto é, a firme determinação a que devemos aderir sem cessar, para podermos atingir o nosso fim.
Em toda arte e disciplina, como já disse, tem precedência um certo escopo, isto é, um propósito da alma, uma incessante intenção da mente. Se alguém não o guardar com perseverante empenho, não poderá chegar ao fim desejado.
Pois, como eu disse, o lavrador, tendo por fim próprio viver do proveito de colheitas abundantes com segurança e largueza, exerce o seu escopo ou determinação ao purgar de sarças e ervas inúteis o seu campo, só confiando em atingir o fim almejado, a opulência, se, antes de obtê-lo já de algum modo o possua em seu trabalho e sua expectativa.
Igualmente o mercador. Não abandona o desejo de adquirir mercadorias, pois é por seu intermédio que pode mais rendosamente acumular riqueza. Em vão cobiçaria o lucro, se não tomasse o caminho que a ele conduz.
Os que ambicionam as honras deste mundo, através de determinadas dignidades, escolhem antes os cargos e carreiras a que devem dedicar-se para poder chegar, pelo caminho certo, ao fim que é a desejada dignidade.
Assim, o fim último da nossa via é o reino de Deus. Mas, qual seja o escopo, deve-se cuidadosamente procurar. Se não o soubermos com clareza, em vão nos cansaremos em nossos esforços, pois os que viajam sem caminho certo, só conseguem o labor da jornada, não o avanço.
O fim último da nossa profissão, como já dissemos, é o reino de Deus ou dos céus. Quanto ao nosso escopo, é a pureza de coração sem a qual é impossível alguém alcançar aquele fim.
Portanto, fixando neste escopo o olhar que nos dirige, orientamos a nossa corrida por uma linha certa, de modo que se o nosso pensamento se desviar um pouquinho, nós o retificamos, voltando logo a contemplá-la, como a uma norma. Revertendo os nossos esforços a esse signo único, ele nos avisará imediatamente, caso o nosso espírito se desvie ainda que pouco da direção proposta.
É como os que são hábeis no manejo de armas de arremesso. Quando querem demonstrar sua perícia diante de um rei deste mundo, esforçam-se por lançar dardos ou flechas em pequenos escudos onde são pintados os prêmios. Estão certos de não poder alcançar o seu fim, o prêmio cobiçado, senão visando diretamente ao alvo. Ganharão o prêmio se puderem realizar o escopo proposto. Se este lhes for subtraído da vista, seja qual for o desvio que afaste o olhar imperito da direção correta, eles não perceberão que se apartaram daquela linha, porque lhes falta o sinal certo que lhes aprove a correção do tiro ou acuse a sua falha. E assim, ao lançarem no ar e no vácuo seus inúteis arremessos, estão impedidos de distinguir por que erraram ou se enganaram, pois carecem de qualquer indicação do desvio, e o seu olhar confuso não pode ensinar como, desde então, corrigir ou recuar a linha acertada.
Assim também a nossa profissão. Seu fim, segundo o Apóstolo, é a vida eterna, conforme, suas próprias palavras: “Tendes por fruto a santidade, e por fim a vida eterna”. Rom. 6, 22
Quanto, porém, ao nosso escopo, é a pureza de coração, que ele merecidamente chama de santidade, sem a qual aquele fim não poderia ser atingido. É como se dissesse em outras palavras: `Tendes o vosso escopo na pureza de coração, e o vosso fim na vida eterna’.
Falando, aliás, desse escopo, o mesmo Apóstolo emprega o próprio termo, isto é, escopo, de modo bem significativo: “Esquecendo o que está para trás, e lançando-me para frente, eu sigo sem parar até o fim, para a recompensa a que fui chamado do alto”. Fil 3,13-14
O texto grego é mais claro ainda, trazendo: “katá skopón diwko”, isto é: “eu sigo até o fim, segundo o escopo”, vale dizer, segundo a determinação que me propus, como se dissesse: “Por este propósito, pelo qual esqueço o que ficou para trás, isto é, os vícios do velho homem, eu me esforço por chegar ao meu fim, que é a recompensa celeste”.
Assim sendo, devemos abraçar com toda a energia o que pode nos encaminhar ao escopo da pureza de coração, e evitar tudo que dela nos separa, como pernicioso e nocivo.
É ela a razão de tudo que fazemos e suportamos. É por ela que abandonamos parentes, pátria, honrarias, riqueza, delícias e qualquer prazer deste mundo, para guardar continuamente a pureza de coração.
Se nos propomos esta intenção, os nossos atos e pensamentos sempre irão direto à sua conquista. Mas se ela não estiver constantemente diante dos nossos olhos, não só os nossos trabalhos se tornarão vazios e instáveis e sem nenhum proveito, mas também se levantarão pensamentos de toda sorte e contrários entre si.
Pois é inevitável que a alma, não tendo a que voltar e a que se fixar de preferência, mude a cada hora e a cada minuto, ao sabor da variedade dos impactos que sofre, e logo se transforme, em virtude das influências de fora, na disposição que primeiro lhe ocorra.
Daí vem que já vimos que muitos, depois de ter deixado as maiores riquezas, não só em quantias de ouro e prata, mas igualmente em propriedades magníficas, se deixam perturbar, depois disso, por causa de um canivete, um estilete, uma agulha, uma pena de escrever. Se tivessem mantido o olhar invariavelmente fixo naquela pureza de coração, jamais teriam admitido em coisas tão pequenas o que radicalmente rejeitaram em bens consideráveis e preciosos.
Pois acontece muitas vezes que não poucos guardam com tanto ciúme um volume, que não permitem a ninguém sequer de leve o ler ou tocar. E assim encontram ocasião de impaciência e de morte onde eram estimulados a ganhar a recompensa de paciência e de caridade. Depois de terem distribuído todos os seus bens por amor de Cristo, eles retém em coisas mínimas o antigo afeto do seu coração e se deixam por elas, muitas vezes, encher-se de fortes cóleras, como os que, não tendo a caridade do Apóstolo, se tornam de todo infrutuosos e estéreis. O santo apóstolo o previa, em espírito, quando disse: “Ainda que eu distribuísse todos os meus bens para o alimento dos pobres, e entregasse meu corpo às chamas, se eu não tiver a caridade, de nada me serve”. I Cor 13,3
Prova-se, assim, com clareza, que não se alcança de imediato a perfeição pelo simples despojamento e pela renúncia de toda riqueza e honraria, se não houver aquela caridade cujos membros descreve o Apóstolo, pois é só na pureza de coração que ela consiste.
Pois o que é não invejar, não se encher de orgulho, não se irritar, não agir mal, não ir atrás do próprio interesse, não ter prazer com a injustiça, não levar em conta o mal (I Cor. 13,4ss) e o resto, senão oferecer sempre a Deus um coração perfeito e sincero, e guardá-lo imune de quaisquer perturbações?
É, portanto, pela pureza do coração que tudo devemos fazer e apetecer. Por ela, temos de ir atrás da solidão. Por ela, saibamos que nos cumpre assumir jejuns, vigílias, trabalhos, despojamento, leitura e outras virtudes, para, graças a isto, tornar e conservar livre de más paixões o nosso coração, galgando por estes degraus a perfeição da caridade.
E se eventualmente não pudermos, em virtude de alguma legitima e necessária ocupação, realizar o ritual dos nossos rigores costumeiros, não vamos por motivos de tais observâncias cair na tristeza ou na ira ou indignação, pois é para vencer tais coisas que teríamos feito o que foi omitido. Não é tão grande o lucro do jejum, quanto os dispêndios da ira; nem tanto o fruto que se colhe com a leitura, quanto o dano que sofremos com o desprezo de um irmão.
Convém, portanto, fazer por causa do nosso escopo principal, isto é, a pureza do coração, que é a caridade, todas aquelas coisas secundárias, jejuns, vigílias, anacorese, meditação das Escrituras, e não desbaratar por causa delas esta virtude principal, pela qual, se a guardarmos intacta em nós, nada nos poderá fazer mal, ainda que se omita por necessidade algo secundário.
De resto, não nos servirá de nada fazer todas as coisas, se nos deixarmos privar daquela que chamamos principal e para cuja aquisição tudo deve ser feito.
Se alguém, com efeito, se apressa a arranjar e preparar as ferramentas de qualquer arte, não é para as possuir ociosas nem para fundar na mera posse dos instrumentos o fruto deles esperado, mas sim para adquirir realmente, por seu serviço, a maestria e o produto daquela arte, de que são eles os meios.
Assim, os jejuns, as vigílias, a meditação das Escrituras, o despojamento e a privação de todos os recursos não constituem a perfeição, mas são instrumentos da perfeição, pois se não é neles que está o fim dessa disciplina, é por eles que se chega ao fim.
É, portanto, em pura perda que alguém multiplicará tais exercícios, se neles detiver a intenção do seu coração, como se fossem o sumo bem, deixando de fixar no fim pelo qual se justificam aquelas práticas, todo o esforço da sua virtude. Possuiriam os instrumentos daquela disciplina, mas ignorariam o seu fim, no qual consiste todo o fruto.
Tudo, pois, que pode perturbar a pureza e a tranqüilidade da mente, ainda que pareça útil e necessário, deve ser evitado como prejudicial. Com esta norma poderemos escapar à dispersão dos pensamentos extravagantes e atingir, seguindo a justa direção, o fim querido.
Este, portanto, deve ser para nós o principal esforço, esta a invariável intenção do coração, para que a mente sempre esteja fixa em Deus e nas coisas divinas. Tudo o que disto se afasta, mesmo que seja grande, deve ser julgado secundário ou mesmo ínfimo, ou por certo nocivo. De modo muito belo, o Evangelho traça uma figura deste espírito e deste modo de agir, no episódio de Maria e Marta.
Enquanto Marta prestava um serviço absolutamente santo, pois era ao próprio Senhor e a seus discípulos que ela ministrava, e Maria, somente atenta à doutrina espiritual, estava fixa aos pés de Jesus, que ela, beijando, ungia com o perfume duma boa confissão, é ela a preferida pelo Senhor, por ter escolhido a melhor parte, e uma parte que não lhe podia ser tirada.
Marta, com efeito, toda ocupada nos piedosos cuidados do seu serviço doméstico, vendo-se incapaz de cumpri-lo sozinha, pede ao Senhor a ajuda da irmã: “Não te importas que minha irmã me deixe servir sozinha? Dize-lhe, pois, que me ajude”. Lc. 10,40
Não era a uma obra vil, mas a um louvável ministério, que ela chamava Maria. E, no entanto, que resposta ouviu do Senhor? “Marta, Marta, estás preocupada e te perturbas por muitas coisas. Não há necessidade senão de poucas, e até mesmo uma só basta. Maria escolheu a boa parte, que não lhe será tirada”. Lc. 10, 41-42
Vedes, portanto que o Senhor colocou o bem principal só na “theoria”, isto é, na contemplação divina. Segue-se que as outras virtudes, ainda que as proclamemos necessárias e úteis e boas, nós a julgamos de segundo grau, porque todas são praticadas para a obtenção desta só. Dizendo o Senhor: “Estás preocupada e te perturbas por muitas coisas; não há necessidade senão de poucas e até mesmo uma só basta”; ele colocou o sumo bem não na ação, embora louvável e abundante de frutos, mas na contemplação dEle mesmo, que é, na verdade, simples e una. Ele afirmou que poucas coisas são necessárias para a perfeita bem-aventurança, isto é, aquela “theoria” que começa pela consideração do exemplo de uns poucos santos.
Elevando-se desta contemplação, aquele que ainda se acha em progresso, chegará também a esse único assim chamado, isto é, à visão de Deus só, com a sua graça. Ultrapassando, com efeito, os atos e ministérios maravilhosos dos santos, ele já passa a nutrir-se da beleza e do conhecimento de Deus: “Maria escolheu a boa parte, que não lhe será tirada”.
É preciso considerar isto mais cuidadosamente. Quando Ele disse: “Maria escolheu a boa parte”, embora se cale a respeito de Marta e não pareça censurá-la, ao louvar aquela, declara esta inferior. E quando diz “que não lhe será tirada”, mostra que desta pode-se tirar a sua parte, um serviço corporal não pode perseverar sempre com o homem, ao passo que a ocupação de Maria, esta, como Ele ensina, em tempo algum pode findar.
CASSIANO:
Ficamos muito perturbados com esta palavra. Pois que, dissemos nós, então o labor dos jejuns, a solicitude da leitura, as obras de misericórdia, de justiça, de piedade e afeição humana, nos serão tiradas e não permanecerão com os seus autores? Mas, sobretudo, não foi o próprio Senhor que prometeu o reino dos céus em retribuição a tais obras, ao dizer: “Vinde, benditos do meu Pai, entrai na posse do reino que está preparado para vós desde a origem do mundo. Pois tive fome, e me desde de comer; tive sede, e me deste de beber”. Mt. 25, 34-35
E o resto? Como enfim, será tirado o que introduz no reino os seus praticantes?
MOISÉS:
Eu não disse, respondeu o abade Moisés, que o prêmio da boa obra nos deva ser tirado, porque o mesmo Senhor declara: “Aquele que der a um desses pequeninos um cálice de água fresca, porque é um dos meus discípulos, em verdade vos digo, não perderá a sua recompensa”, Mt. 10, 42, mas sim que lhe será tirada a ação, atualmente exigida pela necessidade corporal, pelos ataques da carne ou pelas desigualdades deste mundo.
A assiduidade da leitura e as aflições do jejum para purificar o coração e castigar a carne, só tem utilidade na vida presente, enquanto “a carne tem concupiscência contra o espírito”. Gal. 5, 17. Vemos, aliás, que não raro esse exercício já nesta vida cessa para aqueles que estão esgotados pelo excessivo trabalho, ou pela doença e pela velhice, e não podem ser perpetuamente praticados. Quanto mais cessarão no futuro, quando “este corpo corruptível se revestir de incorruptibilidade”, I Cor. 15, 53, e esse corpo agora “animal” ressuscitar “espiritual” (I Cor. 15, 44), e a carne começará a não mais ter concupiscência contra o espírito?
Sobre isto, igualmente, o Apóstolo se pronuncia com clareza: “O exercício corporal tem utilidade limitada, mas a piedade, (é a caridade, sem dúvida, que deve-se entender), é útil para tudo, pois ela tem a promessa da vida presente e futura”. I Tim. 4, 8. Dizer que tem uma utilidade limitada, é declarar claramente que ela nem se pratica todo o tempo, nem pode por si só conferir, a quem se esforça, a suma perfeição. O limite, com efeito, pode referir-se às duas coisas, vale dizer, tanto à brevidade do tempo, já que o exercício corporal não pode ser co-eterno ao homem nem na vida presente nem na futura; como, igualmente à pouca utilidade obtida pelos exercícios corporais, porque a maceração corporal produz um certo começo de progresso, mas não a própria perfeição da caridade, e é esta que tem a promessa da vida atual e futura.
Julgamos, pois, necessário o exercício dessas obras, porque sem elas é impossível subir ao cume da caridade. As obras de caridade e misericórdia, como as chamais, são também necessárias neste tempo, enquanto ainda reina a desigualdade. Mas dessas obras nem mesmo seria de esperar a sua prática, se não houvesse, aqui em baixo, um numero muito grande de pobres, necessitados e enfermos, produzido pela injustiça dos homens, daqueles, quero dizer, que retiveram para o seu uso exclusivo, sem contudo, realmente servir-se delas, as coisas que o criador comum concedeu a todos.
Enquanto, pois, grassar neste mundo uma tal desigualdade, aquela ação tão necessária aproveitará a quem a exercer, dando ao bom coração e à benevolência fraterna o prêmio da herança eterna. Mas no século futuro, reinando a igualdade, ela cessará. Já não mais haverá ali diferenças que exijam a sua prática, mas todos passarão da multiplicidade da ação à caridade de Deus e à contemplação das coisas divinas, numa perpétua pureza de coração.
É a isto que, desde este século, se dedicam com todas as forças, aqueles que só querem cuidar da ciência e da purificação de sua mente. Consagrando-se, enquanto se acham na condição carnal e corruptível, ao ofício em que haverão de permanecer depois de a ter deixado, eles atingem aquela promessa ao Senhor, nosso Salvador, que diz: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”. Mt. 5, 8
Por que vos admirais da transitoriedade daqueles serviços acima enumerados? O próprio Apóstolo nos descreve como passageiros até os mais sublimes carismas do Espírito Santo. Somente a caridade, como ele nos indica, permanece sem fim: “As profecias serão abolidas, as línguas cessarão; a ciência será destruída”. I Cor. 13, 8. Mas, quanto à caridade, diz ele: “A caridade não passará jamais”. I Cor. 13, 8. Todos os dons, com efeito, nos são dados em razão da utilidade e da necessidade, por algum tempo, devendo, sem dúvida, desaparecer logo que se consumar a presente economia. A caridade, porém, não será jamais interrompida. Não é só neste mundo que ela opera em nós de modo útil, mas também no futuro. Depois de deposto o fardo das necessidades corporais, ela permanecerá ainda mais eficaz e mais excelente, para que, sempre imune de qualquer desgaste, possa aderir a Deus, na eterna incorruptibilidade, de modo ainda mais ardente e mais intenso.
GERMANO:
Quem é que pode, na fragilidade da carne, ser sempre tão preso a essa contemplação que nunca pense na chegada de um irmão, na visita de um doente, no trabalho manual, ou na hospitalidade devida aos peregrinos ou às pessoas que chegam? E, afinal, quem não é solicitado a prover às necessidades e cuidados do corpo? Muito gostaríamos de aprender como e em que medida pode a mente unir-se a esse Deus invisível e incompreensível.
MOISÉS:
Unir-se a Deus sem interrupção e ficar-lhe inseparavelmente unido pela contemplação, como dizeis, é impossível ao homem na fragilidade da carne.
Mas precisamos de saber onde devemos ter fixa a intenção da nossa mente e para qual objetivo reconduzir constantemente o olhar da nossa alma. Se a mente puder guardá-la, alegre-se; se se deixar distrair, deplore e suspire.
E saiba que decaiu do bem supremo, todas as vezes que se surpreender esquecida daquela contemplação. Julgue ser uma prostituição todo afastamento, ainda que momentâneo, da contemplação do Cristo. Quando, pois, o nosso olhar se desviar dele um pouco, voltemos de novo para ele os olhos do coração e reapliquemos como em linha reta a força da mente.
Tudo, na verdade, se tem na profundeza da alma. Se daí foi expulso o demônio, e se os vícios não mais aí reinam, conseqüentemente se funda em nós o reino de Deus, como diz o Evangelista: “O reino de Deus não virá de modo visível. Não dirão: ei-lo aqui ou ali. Em verdade, eu vos digo, o reino de Deus está dentro de vós”. Lc. 17, 20-21
Ora, dentro de nós não pode existir senão o conhecimento ou a ignorância da verdade e o amor dos vícios, pelos quais preparamos em nosso coração um reino para o demônio ou para o Cristo. O Apóstolo, por sua vez, assim descreve a qualidade desse reino: “O reino de Deus não é comida ou bebida, mas justiça, paz e alegria no Espirito Santo” Rom. 14, 17
Se, portanto, o reino de Deus está dentro de nós, e se ele é justiça, paz e alegria, quem mora nessas virtudes, está, sem dúvida, no reino de Deus. E, pelo contrário, quem vive na injustiça, na discórdia e na tristeza que produz a morte, está no reino do demônio, no inferno e na morte, pois é por esses indícios que se discerne o reino de Deus ou do diabo.
E, de fato, se, elevando o olhar da mente, considerarmos aquele estado em que vivem as potências celestes que estão verdadeiramente no reino celeste, como é que devemos julgá-lo, senão a perpétua e continua alegria? Que é, pois, mais próprio e mais conveniente à verdadeira bem-aventurança, do que a tranqüilidade constante e a alegria eterna?
E para aprenderdes com maior certeza que assim é como dizemos, não por minha conjetura, mas pela autoridade mesma do Senhor, escuta-o descrevendo claramente a natureza e o estado daquele mundo: “Eis que eu crio novos céus e uma nova terra; as coisas antigas não serão mais lembradas, nem subirão mais ao coração. Mas gozareis de uma alegria e exultação eterna no que eu criar”. Is. 65, 17-18. E ainda: “Nela se encontrarão o gozo e a alegria, ação de graças e cantos de louvor. E isto será de mês a mês, de sábado a sábado”. Is. 51, 3; 66, 23. E mais uma vez: “A alegria e a exultação eles terão, a dor e o gemido fugirão”. Is. 35, 10
Se desejais conhecer com clareza ainda maior o que são a vida e a cidade dos santos, prestai atenção ao que diz a voz do Senhor, falando a Jerusalém: “Eu te darei por visita a paz e como autoridade a justiça. Não se ouvirá mais falar de iniqüidade em tua terra, nem de devastações e de ruínas em tuas fronteiras, e a salvação cobrirá teus muros e o louvor as tuas portas. Para ti não haverá mais o sol para luzir durante o dia, nem o esplendor da lua te iluminará, pois o próprio Senhor será a tua luz eterna, e Deus a tua glória. Teu sol não se porá, e a tua lua não diminuirá, e terminarão os dias do teu luto”. Is. 60, 17-20
Por isto o santo Apóstolo não declara que qualquer alegria, de um modo geral e simplesmente, seja o reino de Deus, mas somente aquela que é no espírito, como ele assinala e específica (Rom. 14, 17). Ele sabe que existe uma outra alegria, que é censurável, da qual se diz: “Este mundo se alegrará”. Jo. 16, 20. E ainda: “Ai de vós que rides, porque chorareis”. Lc. 6, 25.
O reino dos céus, sem dúvida, deve ser entendido em três sentidos. Ou que os céus, isto é, os santos, hão de reinar sobre os outros homens submetidos a eles, conforme esta palavra: “Tu governarás cinco cidades, e tu a dez”, Lc. 19, 17-19 e esta outra dirigida aos discípulos: “Assentai-vos-eis sobre doze tronos e julgareis as doze tribos de Israel”. I Cor. 15, 28 Outro sentido é que os próprios céus tornar-se-ão o reino de Cristo, quando tudo lhe for submetido e Deus começar a “ser tudo em todos” (I Cor. 15, 28). Ou, enfim, que os santos reinarão nos céus com o Senhor.
Por este motivo, saiba cada um desde agora, enquanto se acha neste corpo, que lhe caberá aquele lugar e ministério do qual na vida presente ele se mostrar um membro devotado. E não duvide, também, que no século ele terá a mesma sorte daquele cujo serviço e companhia tiver agora preferido. É a sentença do Senhor que diz: “Se alguém me quer servir, me siga, e onde eu estou, lá estará o meu ministro”. Jo. 12, 26
Quanto à contemplação de Deus, esta pode entender-se de muitos modos.
Pois Deus, nós o conhecemos não só pela admiração da sua essência incompreensível, que ainda se acha escondida na esperança da promessa, mas também pela grandeza das suas criaturas, ou se consideramos a sua justiça ou do auxílio cotidiano da sua providência. Assim é quando repassamos, de mente muito pura, tudo o que ele fez por seus santos ao longo de cada geração. É quando admiramos, de coração a tremer, a força com que governa, modera e rege todas as coisas, bem como a imensidade da sua ciência e o seu olhar ao qual não escapa nem o segredo dos corações. Ou quando pensamos que o numero das areias e das ondas do mar ele contou e conhece. E quando contemplamos, cheios de estupefação, que são presentes ao seu conhecimento as gotas das chuvas, os dias e as horas dos séculos, o passado e o futuro. E quando vemos, num transporte de admiração, a inefável clemência com que suporta, sem que a sua longanimidade se canse, os crimes inumeráveis cometidos a cada momento diante dos seus olhos. E a vocação a que nos chamou, pela graça da sua misericórdia e sem quaisquer méritos precedentes. E ainda quantas ocasiões de salvação ele concede aos que vai adotar como filhos!
Pois ele nos fez nascer de tal modo que, desde o berço, a sua graça e o conhecimento da sua lei nos fossem dados. E, vencendo em nós ele próprio o adversário, ao preço apenas do consentimento da nossa boa vontade, nos agracia com a eterna bem-aventurança e prêmios sem salvar, o plano de sua incarnação, e dilatar entre os povos as maravilhas dos seus méritos.
São, aliás, inumeráveis outras contemplações do mesmo gênero, que podem nascer em nossas faculdades, segundo a qualidade da nossa vida e a pureza do coração, e nas quais Deus é visto ou possuído em puras intuições. Ninguém, no entanto, as poderia reter perpetuamente, se nele ainda vive algo dos afetos carnais. Porque “não poderás ver a minha face”, diz o Senhor, “nenhum homem pode me ver e viver”, Ex. 33, 20
Isto é, para este mundo e as afeições terrenas.
GERMANO:
Como é que pensamentos supérfluos, mesmo contra a nossa vontade e até mesmo sem sabermos, se insinuam em nós de modo tão sutil e escondido, que temos não pequena dificuldade não só para os repelir, mas também para os conhecer e descobrir? Pode a mente ver-se, um dia, livre deles e não ser mais atacada por ilusões desta espécie?
MOISÉS:
É impossível, sem dúvida, que a mente não seja perturbada por pensamentos. Mas a quem se empenha, é possível os acolher ou rejeitar. Se, de um lado, o seu nascimento não depende inteiramente de nós, já a sua aprovação e acolhida está em nossas mãos.
E se dizemos ser impossível à mente não ser assaltada por pensamentos, nem por isso se deve tudo atribuir às suas investidas ou aos espíritos malignos que nos tentam sugeri-los. Se assim não fosse, nem sobraria ao homem o livre arbítrio, nem nos restaria o empenho da nossa própria correção.
Eu digo, ao contrário, que depende de nós, em grande parte, melhorar a qualidade dos nossos pensamentos, e influir na sua formação em nossos corações, se santos e espirituais ou carnais e terrenos.
É a este fim, portanto, que se prendem a leitura freqüente e a constante meditação das Escrituras: proporcionar a memória das coisas espirituais.
Este o motivo do canto repetido dos Salmos: alimentarmos a continua compunção, e afinarmos de tal modo a mente, que ela perca o sabor das coisas terrenas e possa contemplar as celestes. Se, voltando atrás, e levados por uma sorrateira negligência, cessarmos tais exercícios, é inevitável que a mente obscurecida pela impureza dos vícios se incline logo para o lado da carne e aí se precipite.
Este exercício do coração bem se pode comparar à mó que as águas dum canal, tombando, fazem rodar com rapidez. Sempre a dar voltas ao impulso das águas, ela não pode, de nenhum modo, cessar o seu trabalho. Entretanto, está no poder daquele que se acha à testa do moinho, escolher o que vai moer, se o trigo, a cevada ou o joio. O que é fora de dúvida, é que só mói aquilo que o responsável tiver fornecido.
Ora, o mesmo acontece com a alma. Posta em movimento pelas torrentes de tentações que a investem de todos os lados através dos choques da vida presente, ela não poderá ficar vazia da maré dos pensamentos. A seu zelo e diligência cabe ver quais deve admitir ou procurar.
Se, pois, como dissemos, recorremos à meditação assídua da Escrituras e levantamos a nossa memória à lembranças das coisas espirituais, ao desejo da perfeição e à esperança da futura bem aventurança, é inevitável que os pensamentos daí nascidos sejam espirituais e farão que nossa mente se detenha naquilo que meditamos.
Se, pelo contrário, vencidos pela preguiça ou pela negligência, nos deixamos invadir pelos vícios e conversas ociosas, ou nos embaraçamos com cuidados mundanos e preocupações supérfluas, a espécie de cizânia que daí nasce sobrecarregará o nosso coração com um trabalho nocivo. E segundo a sentença do nosso Salvador, onde estiver o tesouro das nossas obras e de nossa intenção, lá permanecerá necessariamente o nosso coração (Mt. 6, 21).
Uma coisa importante devemos, antes de tudo, saber. Três são os princípios dos nossos pensamentos, isto é, Deus, o demônio e nós mesmos.
São, com efeito, de Deus, quando ele se digna de nos visitar por alguma iluminação do Espírito Santo, elevando-nos a progresso mais alto; também, quando ele nos castiga por uma compunção salutar, se avançamos menos ou nos deixamos vencer, agindo com relaxamento; ou, ainda, ao descobrir-nos os celestes mistérios e quando atrai a nossa vontade e propósito a atos ainda melhores (Est. 6, 1ss).
São, com efeito, de Deus, quando ele se digna de nos visitar por alguma iluminação do Espírito Santo, elevando-nos a progresso mais alto; também, quando ele nos castiga por uma compunção salutar, se avançamos menos ou nos deixamos vencer, agindo com relaxamento; ou, ainda, ao descobrir-nos os celestes mistérios e quando atrai a nossa vontade e propósito a atos ainda melhores (Est. 6, 1ss).
É como aconteceu com o rei Assuero quando, castigado pelo Senhor, foi levado a consultar os anais e estes lhe trouxeram à memória os benefícios de Mardoqueu. Ele então o exalta com as maiores honras e revoga de imediato a crudelíssima sentença de morte contra o povo judeu. O mesmo se dá com o profeta, ao recordar: “Escutarei o que me fala o Senhor Deus”. Sl. 84, 9. E este outro que afirma: “Assim falou o anjo que falava em mim”, Zac. 1, 14, ou como quando o filho de Deus promete vir com o Pai e fazer em nós a sua morada (Jo. 14, 23). Ou ainda quando ele diz: “Não sois vós que falais, mas o Espírito do vosso Pai que fala em vós”, Mt. 10, 20, e também quando diz o vaso da eleição, S. Paulo: “Procurais uma prova de que é Cristo que fala em mim”. II Cor. 13, 3.
Do demônio, por outro lado, nasce uma série de pensamentos, quando se esforça por derrubar-nos tanto pela atração dos vícios, como por ocultas ciladas, pondo em ação a sua sutilíssima esperteza para nos apresentar fraudulentamente o mal como bem e transfigurar-se a nossos olhos em anjo de luz (II Cor. 11, 14). Ou, como conta o evangelista: “E acabada a ceia, como já o demônio tinha posto no coração de Judas, filho de Simão, o Iscariota, o propósito de trair o Senhor”, Jo. 13, 2 e, logo a seguir: “Depois do bocado, entrou nele Satanás”. Jo. 13, 27. O mesmo disse Pedro a Ananias: “Por que Satanás tentou o teu coração, para mentires ao Espírito Santo?” At. 5, 3. Acrescentemos ainda o que lemos no Evangelho, mas que muito antes o Eclesiastes predizia: “Se o espírito do que tem o poder se levanta contra ti, não deixes teu lugar”. Ecl. 10, 4. Igualmente, o que pela boca do espírito imundo se diz a Deus contra Acab, no Terceiro Livro do Reis: “Eu sairei e serei um espírito mentiroso na boca de todos os seus profetas”. III Reis 22, 12
Quanto aos pensamentos que vêm de nós, são os que nascem quando nos lembramos naturalmente de tudo que estamos fazendo, ou fizemos ou ouvimos. É a estes que se refere o bem aventurado Davi, quando diz: “Eu pensei nos dias antigos, e tive na mente os anos eternos, e meditei, de noite, quando me exercitava no meu coração e examinava o meu espírito”. Sl. 76, 6-7. E também: “Os pensamentos dos justos são justiça”. Pr. 12, 5. E, nos Evangelhos, diz o Senhor aos Fariseus: “Porque pensais o mal em vossos corações?” Mt. 9, 4. Devemos, portanto, sempre ter em vista esta causa tríplice dos nossos pensamentos e examinar com sagaz discernimento todos os que emergem em nosso coração.
É preciso indagar desde o princípio as suas origens, causas e autores, a fim de podermos considerar, segundo o mérito do que sugerem, como os devemos acolher. Assim nos tornaremos cambistas peritos, segundo o preceito do Senhor (Mt. 25, 27).
Sua arte e perícia, com efeito, consiste em reconhecer o que é ouro puríssimo e o que foi menos purificado pelo fogo no cadinho. No seu bem atilado discernimento, ele não se deixa enganar, se uma peça vil de cobre tenta imitar, com as aparências de ouro brilhante, uma moeda preciosa. Pois não só sabe reconhecer as peças cunhadas com a efígie de tiranos, mas também discernir com a perícia mais sagaz as que. embora trazendo a imagem dum rei verdadeiro, são dinheiro falsificado. Finalmente, investigam cuidadosamente, ao exame da balança, se nada lhes falta do legítimo peso.
Tudo isto nós também devemos observar espiritualmente, como nos mostra em exemplo, com este nome de cambista, a palavra do Evangelho.
Assim é que nos cumpre, em primeiro lugar, examinar com maior cuidado tudo o que se introduz sorrateiramente em nossos corações, ou qualquer preceito que nos seja apresentado, a ver se não é, acaso, algo ligado à superstição judaica ou proveniente da orgulhosa filo do século, que apresenta uma piedade de mera superfície. Isto poderemos fazer, se cumprimos aquela palavra do Apóstolo: “Não creias em qualquer espírito, mas provai os espíritos se são de Deus”. I Jo. 4, 1.
Nesta espécie de erros caíram, enganados, aqueles que, depois de ter feito profissão de monge, se deixaram iludir por belas palavras e certas sentenças de filósofos que, à primeira vista, lhes soavam com sentido piedoso e de acordo com a religião. Enganadoras em seu brilho exterior de ouro, elas deixaram para sempre nus e miseráveis aqueles a quem seduziram por sua aparência, como moedas de cobre vil e falsificadas, seja fazendo-os voltar ao barulho do mundo, seja por arrastá-los a erros heréticos ou a opiniões orgulhosas.
Foi o que sofreu Acor, como lemos no livro de Josué, filho de Nave. Tomado pela cobiça, ele furtou um lingote de ouro do acampamento dos Filisteus, merecendo por isto ser punido de anátema e condenando à morte eterna.
Em segundo lugar, convém observar com todo cuidado que, ligado ao ouro puríssimo das Escrituras, uma falsa interpretação não nos engane por causa do metal precioso. Foi neste ponto que o demônio, muito esperto, tentou enganar o nosso Salvador, como se se tratasse de um simples homem. Corrompendo com uma interpretação maliciosa o que deve ser entendido das pessoas dos justos em geral, ele tenta explicá-lo de modo especial àquele que não precisava da guarda dos anjos: “Ele ordenou a seus anjos por causa de ti, que guardem em todos os teus caminhos; e eles te transportarão em suas mãos, para que não batas o teu pé contra as pedras”. Mt. 4, 6; Sl. 90, 11-12
Como se vê, ele assim transmuda, por uma astuta interpretação, as preciosas palavras da Escritura, torcendo-as num sentido contrário e nocivo, para nos apresentar, sob as cores do ouro falso, a imagem dum tirano usurpador.
O mesmo acontece, quando ele se esforça por nos iludir com moedas falsas, aconselhando, por exemplo, alguma obra de piedade que não provem da cunhagem legitima dos antigos e, sob pretexto de virtude, nos leva ao vício. São jejuns imoderados e inoportunos, vigílias excessivas, orações desordenadas, leituras inconvenientes com que nos logra e arrasta a um fim desgraçado.
Outras vezes, ele nos persuade a fazer intervenções e visitas piedosas, a fim de nos tirar da clausura espiritual do mosteiro e do segredo duma paz amiga. Ou também nos leva a assumir os cuidados e assuntos de religiosas destituídas de recursos, para que o monge, prisioneiro desses laços de que não pode soltar-se, se veja dividido por preocupações perniciosas. Embora tais coisas sejam contrárias à nossa salvação e profissão, como, no entanto, se cobrem de certo véu de misericórdia e piedade, facilmente enganam os inexperientes e incautos.
Elas imitam as moedas do rei verdadeiro, pois, parecem, à primeira vista, cheias de piedade, mas não foram cunhadas pelos legítimos moedeiros, isto é, os padres católicos e aprovados, nem procedem da oficina do seu firme e autorizado ensinamento. São moedas clandestinas, fabricadas em fraude pelos demônios e passadas, com grande dano, aos inexperientes e ignorantes.
Conquanto pareçam no momento úteis e necessárias, se, contudo, começam depois a ser contrárias à solidez da nossa profissão e a pôr em risco, de certo modo, todo o corpo do nosso propósito, importa à nossa salvação cortá-las e lançá-las fora, como a um membro que, embora necessário, nos escandaliza, mesmo que nos pareça exercer a função de mão ou pé direito. É preferível, de fato, ter um membro a menos, isto é, privar-se da realização e do fruto de um preceito, e continuar são e firme quanto aos outros, para depois entrar amputado no reino dos céus, a cair, com todos os mandamentos completos, em algum escândalo. Transformado em pernicioso hábito, ele nos separaria da regra de austeridade e da disciplina do projeto de vida que abraçamos para lançar-nos numa tal ruína que, sem poder compensar os danos futuros, exporá ao fogo do inferno todos os nossos frutos passados e o corpo inteiro das nossas obras (Mt. 18, 8).
Deste gênero de ilusões o livro dos Provérbios fala bem a propósito: “Há caminhos que parecem retos ao homem, mas o seu final é o fundo do inferno”. Pr. 16, 25. E também: “O maligno prejudica quando se une ao justo”. Pr. 11, 25
Vale dizer, o demônio engana, quando se cobre com as cores da santidade. “Ele odeia a palavra que protege”, Pr. 11, 25, isto é, o vigor da discrição que procede das palavras e conselhos dos antigos.
Agora, a última tarefa do cambista perito. Dissemos acima que é o exame do peso. Ela se cumprirá, se o nosso pensamento refletir sobre as coisas que tivermos a fazer, revolvendo-as com o maior escrúpulo para que, depois de colocá-las na balança do nosso coração, as possamos pesar com a mais perfeita exatidão. Assim apuraremos se são completas segundo a dignidade da nossa regra comum, se são de peso em razão do temor de Deus e irrepreensíveis quanto ao sentido; ou se são levianas por ostentação humana ou alguma novidade presunçosa, e se a vanglória não lhes teria diminuído ou arruinado o peso de seu mérito.
Desta maneira, nós as examinamos numa balança autorizada, conferindo-as com os atos e os ensinamentos dos profetas e dos Apóstolos, de modo que possamos ou guardá-las, se são coisas integras e perfeitas e de peso igual a tais ensinamentos, ou recusá-las com toda a cautela e diligência, se defeituosas e nocivas e não conformes ao mesmo padrão.
É, pois, preciso examinar, sem cessar, as profundezas do nosso coração e, com o farol mais sensível, seguir o rastro dos que ali entram, para não acontecer que alguma fera espiritual, leão ou dragão, passando por lá, deixe em segredo a marca de seus passos perniciosos e permita, pela negligência quanto aos ensinamentos, o acesso de outros ao santuário intimo da nossa alma.
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