Padre Antônio Vieira e a atualidade do Sermão da Sexagésima



Padre Antônio Vieira nasceu em Lisboa em 06 de fevereiro de 1608; partiu de lá com sua família para o Brasil em 1614 e seu destino, era a Bahia. No ano de 1623 entrou no Noviciado da Companhia de Jesus e ordenou-se sacerdote em 1634. Foi Pregador Real e Tribuno da Restauração, participou da Embaixada portuguesa na França, participou de missão no Maranhão, foi preso e teve a palavra cassada pelo Tribunal do Santo Ofício (Inquisição); restituída-lhe a liberdade, é isento de culpa pelo Papa. Padre Antônio Vieira deixou cerca de 700 cartas e 200 sermões.

Pe. Antônio Vieira destacou-se como o grande pregador do Brasil Colônia, abordando variados temas, é fonte de pesquisa e de estudo por linguistas, historiadores, teólogos e etc (aí se incluem os curiosos como eu). Especialmente me chamou a atenção o " Sermão da Sexagésima" , pregado na Capela Real de Lisboa no ano de 1655, sendo conhecido também como "Sermão da Palavra de Deus". Nessa oportunidade, Pe. Vieira utiliza ironias do barroquismo para responder àqueles pregadores que o criticavam. Salvo posições políticas pessoais e certo relato de entreguismo do Maranhão para os holandeses, quando da segunda invasão, e as críticas a Inquisição, chama a atenção a atualidade do escrito aqui exposto.

Apesar da rixa local de Pe. Vieira, seu discurso tem como foco mostrar o por que da pregação da palavra de Deus já naquele tempo não surtia efeito. É atual pois as dificuldades se assemelham, os exemplos se encaixam nos dias de hoje. Em tempos de mídias variadas voltadas para a evangelização, os exemplos ainda são as melhores armas dos católicos; como costuma dizer Pe. Celso Alípio (pároco da Catedral Metropolitana de Maceió): "as palavras convencem, mas os exemplos arrastam". Não é demais que lembremos de São Francisco de Assis: "Evangelizem a todo o tempo, e se necessário usem palavras".

"O Sermão da Sexagésima"

Semen est verbum dei (S. Lucas 8,11)

"A semente é a palavra de Deus", começa o nosso pregador, utilizando-se da parábola da Semeadura. Pe. Vieira, trabalha, exercita e esmiuça cada parte do trecho evangélico. Em princípio, mostra que "o semeador saiu a semear", focando especialmente na necessidade de ação evangelizadora declarada no ato de "sair". No seu tempo, Pe. Vieira pensava naqueles que saíram a evangelizar na China, no Japão ou na América. O pregador lembra os riscos que tais semeadores corriam, as dificuldades e medos enfrentados:" E se o semeador ao sair achasse o campo tomado; se se armassem contra ele os espinhos; se se levantassem contra ele as pedras, e se lhe fechassem os caminhos, que havia de fazer?" Nos dias de hoje, quais as "saídas" a semear de nossos pregadores? Quais os riscos que correm para defender a palavra de Deus ou divulgá-la ? Será que só se buscam comodidades? Em seu tempo Vieira já criticava àqueles que só ficavam estáticos em seus púlpitos e que temiam dizer a verdade a ser seguida. No nosso tempo, criticaria àqueles que ficam em frente a TV sendo condescendentes e relativistas, estáticos em suas palavras.

Ecce exiit qui seminat, seminare (S. Mateus,13,3)

"O semeador saiu a semear", mas sofreu a semeadura com as coisas do mundo diz ele: "...todas as criaturas do mundo se armaram contra essa sementeira...criaturas racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os animais; criaturas vegetais, como as plantas; criaturas insensíveis, como as pedras...A natureza insensível o perseguiu nas pedras, a vegetativa nos espinhos, a sensitiva nas aves, a racional; nos homens. E notai a desgraça do trigo, que onde só podia esperar razão, ali achou maior agravo. As pedras secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no; e os homens? Pisaram-no." Mas nos lembra bem o pregador, "Ide e pregai a toda a criatura", mas não aos animais, não as pedras, não as árvores, mas aos povos bárbaros daquele tempo, homens brutos como pedras e troncos de árvores; o risco de serem pisoteados e engolidos, era constante.

Et fecit fructum centuplum (S. Mateus 13,23)

Mas o semeador do Evangelho não deve desistir. Deve retornar a casa e buscar o arado, limpar a terra e retirar os espinhos, diz Pe. Vieira, verá que a colheita virá na próximas tentativas e se multiplicará em cem: Et fecit fructum centuplum. " O trigo, que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho, e a terra boa em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens. Os espinhos são os corações embaraçados com cuidados, com riquezas, com delícias, e neste afoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações duros e obstinados; e nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas do Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem ou a desprezam. Finalmente a terra boa são os corações bons ou os homens de bom coração; e nestes prende e frutifica a palavra divina... "

Já em seu tempo o nosso pregador reflete sobre o poder da palavra de Deus, pois, se ela é tão poderosa, por que gerava tão poucos frutos: "Este grande frutificar da palavra de Deus é o em que reparo hoje; e é uma dúvida ou admiração que me traz suspenso e confuso, depois que subo ao púlpito. Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão poucos frutos da palavra de Deus? Diz Cristo que a palavra frutifica cento por um, e já eu me contentaria com que frutificasse um por cento". Segue pensando o Padre, se nos primeiros tempos não faltam exemplos de conversões de muitos; de conversão de maus; de mártires; por que não nos tempos dele? Trazendo para hoje: Por que não no nosso? Tudo isso se questionava o Padre naquele tempo, tudo isso nos questionamos hoje pois, a palavra de Deus sempre teve e terá a omnipotência de antes; a palavra de Deus nunca perdeu sua força. Mas se se aumentou o número de pregadores, por que não há aumento dos frutos?

No sermão, Pe. Antônio Vieira identifica três motivos ou situações a que depende a frutificação da palavra de Deus: (a) do pregador; (b) do ouvinte e (c) de Deus. Assim, para dar fruto a palavra concorre o "pregador com a doutrina, persuadindo; há de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; a de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelhos e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, e necessária luz e necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?"



Vejamos o que ensina o Padre quanto a se falta da parte de Deus algo para a conversão:

"Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar. Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador, uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas três? -- A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois porque não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? -- Porque o sol e a chuva são as afluências da parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta: do Céu, sempre é por culpa nossa. Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos corações quiserem: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos. Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci? -- disse o mesmo Deus por Isaías."


Demonstrada a parte de Deus, resta-nos a parte do ouvinte e do pregador, segue então o padre suas reflexões:
"Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo. Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também, mas secou-se: Et natum aruit. O trigo que caiu na terra
boa, nasceu e frutificou com grande multiplicação: Et natum fecit fructum centuplum. De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão funda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E porquê? -- Os espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintes de vontades endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos agudos são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir sutilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também a picar a quem os não pica. Aliud cecidit inter spinas: O trigo não picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo sucede cá. Cuidais que o sermão vos picou e vós, e não é assim; vós sois os que picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda são piores, porque um entendimento agudo pode ferir pelos mesmos fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda são piores que as pedras! A vara de Moisés abrandou as pedras, e não pôde abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae. Induratum est cor Pharaonis. E com os ouvintes de entendimentos agudos e os ouvintes de vontades endurecidas serem os mais rebeldes, é tanta a força da divina palavra, que, apesar da agudeza, nasce nos espinhos, e apesar da dureza nasce nas pedras. Pudéramos arguir ao lavrador do Evangelho de não cortar os espinhos e de não arrancar as
pedras antes de semear, mas de indústria deixou no campo as pedras e os espinhos, para que se visse a força do que semeava. E tanta a força da divina palavra, que, sem cortar nem despontar espinhos, nasce entre espinhos. É tanta a força da divina palavra, que, sem arrancar nem abrandar pedras, nasce nas pedras. Corações embaraçados como espinhos corações secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende confiança! Tomai exemplo nessas mesmas pedras e nesses espinhos! Esses espinhos e essas pedras agora resistem ao semeador do Céu; mas virá tempo em que essas mesmas pedras o aclamem e esses mesmos espinhos o coroem. Quando o semeador do Céu deixou o campo, saindo deste Mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamações, e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de Deus até dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra de Deus até nas pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar dos alvedrios hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corações, não é por culpa, nem por indisposição dos ouvintes. Supostas estas duas demonstrações; suposto que o fruto e efeitos da palavra de Deus, não fica, nem por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por consequência clara, que fica por parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa nossa.


O que se assemelha como circunstâncias impeditivas sob a responsabilidade do semeador/pregador naquele tempo, que adiante irá nos dizer Padre Vieira, com o tempo atual? Observemos bem se há verossimilhança na época de Pe. Vieira e nos dias de hoje, ou seja, a verdade daquele tempo com a verdade do nosso tempo é comparável?

Segundo o Padre, no pregador "podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo e a voz". Quanto a pessoa, o famoso orador coloca em lados opostos as condições pessoais daqueles que antes convertiam centenas e milhares; àqueles, eram grandiosos santos, pessoas de reconhecido caráter, exemplares de vida apostólica. Quanto ao seu tempo, diz o "E hoje os pregadores são eu e outros como eu? -- Boa razão é esta. A definição do pregador é a vida e o exemplo." Está aí descrito um grande problema a ser resolvido nos dias de hoje, nossos pregadores, sejam do rádio, da televisão, da escrita ou da pregação em palestras, não têm em suas vidas os exemplos do que pregam; não são evangelho para ser lido em suas ações cotidianas e não são, nem de longe, exemplo de vida apostólica. Continuando com o sermão da Sexagésima : " Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? -- o conceito que de sua vida têm os ouvintes."

Pois é, nos tempos de hoje, com as mais variadas mídias, com "novas canções", com novos movimentos, com modernismos, curas e libertações; com "evangelização self-service", onde temos tudo ao gosto do freguês a pregação não funciona, temos católicos emotivos e lacrimejantes, mas não temos convertidos, os pregadores de hoje não convertem a quase ninguém. É meus pouquíssimos leitores; o que não temos mesmo nos dias atuais é pregadores de exemplos. "Antigamente convertia-se o Mundo, hoje porque se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obra são tiros sem bala; atroam, mas não ferem."

"Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afetado, um estilo tão encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa razão é também esta. O estilo há-de ser muito fácil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear: Exiit, qui seminat, seminare. Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte." Seriam então as poses, os exageros e o estilo pomposo? Será que se perdeu a naturalidade? Que tem pregadores que querem aparecer mais que o próprio Cristo?

"Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que houve no Mundo. E qual foi ele? -- O mais antigo pregador que houve no Mundo foi o céu. Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat Firmamentum -- diz David. Suposto que o céu é pregador, deve de ter sermões e deve de ter: palavras. Sim, tem, diz o mesmo David; tem palavras e tem sermões; e mais, muito bem ouvidos. Non sunt loquellae, nec sermones, quorum non audiantur voces eorum. E quais são estes sermões e estas palavras do céu? --As palavras são as estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com o estilo que Cristo ensinou na terra. Um e outro é semear; a terra semeada de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há-de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: Stellae manentes in ordine suo.Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte há-de estar branco, da outra há-de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra hão-de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra hão-de dizer subiu. Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão-de estar sempre em fronteira com o seu contrário? Aprendamos do céu o estilo da disposição, e também o das palavras. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há-de ser o estilo da pregação; muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro
que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para sua lavoura e o mareante para sua navegação e o matemático para as suas observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante, que não sabem ler nem escrever entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos escreveram, não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: --estrelas que todos vêem, e muito poucos as medem."



"Será pela matéria ou matérias que tomam os pregadores? Usa-se hoje o modo que chamam de apostilar o Evangelho, em que tomam muitas matérias, levantam muitos assuntos e quem levanta muita caça e não
segue nenhuma não é muito que se

recolha com as mãos vazias. Boa razão é também esta. O sermão há-de ter um só assunto e

uma só matéria. Por isso Cristo
disse que o lavrador do Evangelho não semeara muitos gêneros de sementes, senão uma só: Exiit, qui seminat, seminare
semen. Semeou uma semente só, e não muitas, porque o sermão há-de ter uma só matéria,
e não muitas matérias. Se o
lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio
semeara milho grosso e miúdo, e sobre o
milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde. Eis
aqui o que acontece aos sermões
deste género. Como semeiam tanta variedade, não podem colher coisa certa. Quem semeia
misturas, mal pode colher trigo."

Parece que vejo o padre Vieira falando dos nossos pregadores, quanta mistura e confusão vemos e ouvimos que não chegam a lugar nenhum! E ele nos brinda com essa: "Se uma nau fizesse um bordo para o norte, outro para o sul, outro para leste, outro para oeste, como poderia fazer viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto e se navega tão pouco."



"Há de tomar o pregador uma só matéria; há de defini-la, para que se conheça; há de dividi-la, para que se distinga; há de prová-la com a Escritura; há de declará-la com a razão; há de confirmá-la com o exemplo;
há de amplificá-la com as

causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão de seguir,

com os inconvenientes que se
devem evitar; há de responder às dúvidas, há de satisfazer às dificuldades; há de
impugnar e refutar com toda a força da
eloquência os argumentos contrários; e depois disto há de colher, há de apertar, há de
concluir, há de persuadir, há de
acabar. Isto é sermão, isto é pregar; e o que não é isto, é falar de mais alto.
Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de discursos, mas esses hão de nascer todos da mesma matéria e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede. Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há de ser o sermão: há-de ter raízes fortes e sólidas, porque há de ser fundado no Evangelho; há-de ter um tronco, porque há-de ter um só assunto e tratar uma só matéria; deste tronco hão de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela; estes ramos hão de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão de ser vestidos e ornados de palavras. Há de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios; há de ter flores, que são as sentenças; e por remate de tudo, há de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se há-de ordenar o sermão. De maneira que há de haver frutos, há de haver flores, há de haver varas, há de haver folhas, há de haver ramos; mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria."


"Será porventura a falta de ciência que há em muitos pregadores? Muitos pregadores há que vivem do que não colheram e semeiam o que não trabalharam. Depois da sentença de Adão, a terra não costuma dar fruto, senão a quem come o seu pão com o suor do seu rosto. Boa razão parece também esta. O pregador há-de pregar o seu, e não o alheio. Por isso diz Cristo que semeou o lavrador do Evangelho o trigo seu: Semen suum. Semeou o seu, e não o alheio, porque o alheio e, o furtado não é bom para semear, ainda que o furto seja de ciência. Comeu Eva o pomo da ciência, e queixava-me eu antigamente desta nossa mãe; já que comeu o pomo, por que lhe não guardou as pevides? Não seria bem que chegasse a nós a árvore, já que nos chegaram os encargos dela? Pois por que não o fez assim Eva? Porque o pomo era furtado, e o alheio é bom para comer, mas não é bom para semear: é bom para comer, porque dizem que é saboroso; não é bom para semear, porque não nasce. Alguém terá experimentado que o alheio lhe nasce em casa, mas esteja certo, que se nasce, não há-de deitar raízes, e o que não tem raízes não pode dar fruto. Eis aqui por que muitos pregadores não fazem fruto; porque pregam o alheio, e não o seu: Semen suum. O pregar é entrar em batalha com os vícios; e armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ninguém deram vitória. Quando David saiu a campo com o gigante, ofereceu-lhe Saul as suas armas, mas ele não as quis aceitar. Com armas alheias ninguém pode vencer, ainda que seja David. As armas de Saul só servem a Saul, e as de David a David; e mais aproveita um cajado e uma funda própria, que a espada e a lança alheia. Pregador que peleja com as armas alheias, não hajais medo que derrube gigante."

Longe do padre renegar o passado, renegar os sábios, não se pode esquecer os escritos dos santos padres e dos Doutores da Igreja, mais a frente ele nos relembra: "Contudo eu não me firmo de todo nesta razão, porque do grande Baptista sabemos que pregou o que tinha pregado Isaías, como notou S. Lucas, e não com outro nome, senão de sermões: Praedicans baptismum poenitentiae in remissionem peccatorum, sicut scriptum est in libro sermonun Isaiae prophetae. Deixo o que tomou

Santo Ambrósio de S. Basílio; S. Próspero e Beda de Santo Agostinho; Teofilato e Eutímio de S. João Crisóstomo."


Será finalmente a causa, que tanto há buscamos, a voz com que hoje falam os pregadores? Antigamente pregavam bradando, hoje pregam conversando. Antigamente a primeira parte do pregador era boa voz e bom
peito. E verdadeiramente, como o

mundo se governa tanto pelos sentidos, podem às vezes mais os brados que a razão. Boa

era também esta, mas não apodemos provar com o semeador, porque já dissemos que não era ofício de boca. Porém o
que nos negou o Evangelho no
semeador metafórico, nos deu no semeador verdadeiro, que é Cristo. Tanto que Cristo
acabou a parábola, diz o Evangelho
que começou o Senhor a bradar: Haec dicens clamabat. Bradou o Senhor, e não arrazoou
sobre a parábola, porque era tal
o auditório, que fiou mais dos brados que da razão.
Perguntaram ao Baptista quem era? Respondeu ele: Ego vox clamantis in deserto: Eu sou
uma voz que anda bradando
neste deserto. Desta maneira se definiu o Baptista. A definição do pregador, cuidava eu
que era: voz que arrazoa e não voz que brada. Pois por que se definiu o Baptista pelo bradar e não pelo arrazoar; não pela razão, senão pelos brados? Porque há muita gente neste mundo com quem podem mais os brados que a razão, e tais eram aqueles a quem o Baptista pregava. Vede-o claramente em Cristo. Depois que Pilatos examinou as acusações que contra ele se davam, lavou as mãos e disse: Ego nullam causam invenio in homine isto: Eu nenhuma causa acho neste homem. Neste tempo todo o povo e os escribas bradavam de fora, que fosse crucificado: At illi magis clamabant, crucifigatur. De maneira que Cristo tinha por si a razão e tinha contra si os brados. E qual pôde mais? Puderam mais os brados que a razão. A razão não valeu para o livrar, os brados bastaram para o pôr na Cruz. E como os brados no Mundo podem tanto, bem é que bradem alguma vez os pregadores, bem é que gritem. Por isso Isaías chamou aos pregadores «nuvens»: Qui sunt isti, qui ut nubes volant? A nuvem tem relâmpago, tem trovão e tem raio: relâmpago para os olhos, trovão para os ouvidos, raio para o coração; com o relâmpago alumia, com o trovão assombra, com o raio mata. Mas o raio fere a um, o relâmpago a muitos, o trovão a todos. Assim há-de ser a voz do pregador, um trovão do Céu, que assombre e faça tremer o Mundo.

Será que o que nos falta hoje é combate? Vejo o bradar desta forma, com tantos meios para se fazer pouco se dá a cara para bater! O que vemos atualmente são pregadores que falam mais "ficam calados", pregadores que dizem, mas "estão mudos"(ou miúdos).

"As palavras que tomei por tema o dizem. Semen est verbum Dei. Sabeis, Cristãos, a causa por que se faz hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus (como diria) é tão poderosa e tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos nasce. Mas se as palavras dos pregadores não são palavras de Deus, que muito que não tenham a eficácia e os efeitos da palavra de Deus? Ventum seminabunt, et turbinem colligent, diz o Espírito Santo: 'Quem semeia ventos, colhe tempestades'. Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega é vaidade, se não se prega a palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de correr tormenta, em vez de colher fruto?"



Enfim, para que os pregadores saibam como hão de pregar e os ouvintes a quem hão de
ouvir, acabo com um exemplo do

nosso Reino, e quase dos nossos tempos. Pregavam em Coimbra dois famosos pregadores,

ambos bem conhecidos por seus
escritos; não os nomeio, porque os hei de desigualar. Altercou-se entre alguns doutores da
Universidade qual dos dois fosse
maior pregador; e como não há juízo sem inclinação, uns diziam este, outros, aquele. Mas
um lente, que entre os mais tinha
maior autoridade, concluiu desta maneira: "Entre dois sujeitos tão grandes não me atrevo
a interpor juízo; só direi uma
diferença, que sempre experimento: quando ouço um, saio do sermão muito contente do
pregador; quando ouço outro, saio
muito descontente de mim."
Com isto tenho acabado. Algum dia vos enganastes tanto comigo, que saíeis do sermão
muito contentes do pregador; agora
quisera eu desenganar-vos tanto, que saíreis muito descontentes de vós. Semeadores do
Evangelho, eis aqui o que devemos
pretender nos nossos sermões: não que os homens saiam contentes de nós, senão que
saiam muito descontentes de si; não
que lhes pareçam bem os nossos conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes,
as suas vidas, os seus
passatempos, as suas ambições e, enfim, todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si, descontentem-se embora de nós. Si hominibus placerem, Christus servus non essem, dizia o maior de todos os pregadores, S. Paulo: Se eu contentara aos homens, não seria servo de Deus. Oh, contentemos a Deus, e acabemos de não fazer caso dos homens! Advirtamos que nesta mesma Igreja há tribunas mais altas que as que vemos: Spectaculum facti sumus Deo, Angelis et hominibus. Acima das tribunas dos reis, estão as tribunas dos anjos, está a tribuna e o tribunal de Deus, que nos ouve e nos há-de julgar. Que conta há-de dar a Deus um pregador no Dia do Juízo? O ouvinte dirá: Não mo disseram. Mas o pregador? Vae mihi, quia tacui: Ai de mim, que não disse o que convinha! Não seja mais assim, por amor de Deus e de nós. Estamos às portas da Quaresma, que é o tempo em que principalmente se semeia a palavra de Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vícios. Preguemos e armemo-nos todos contra os pecados, contra as soberbas, contra os ódios, contra as ambições, contra as invejas, contra as cobiças, contra as sensualidades. Veja o Céu que ainda tem na terra quem se põe da sua parte. Saiba o Inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus, e saiba a mesma terra que ainda está em estado de reverdecer e dar muito fruto: Et fecit fructum centuplum.



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