Maquiavel e a Religião

Maquiavel e a Religião:
Maquiavel, embora não seja considerado propriamente um filósofo (PADOVANI & CASTAGNOLA, 1970, p.272) é um autor chave para compreensão do pensamento político moderno. No entanto, por diversos e compreensíveis motivos, Maquiavel é um autor polêmico, frequentemente associado à tirania e ao absolutismo da Idade Moderna dos quais ele é mais um sintoma do que a causa. Contudo, ao falarmos em Maquiavel, convém antes de mais nada distinguir sobre qual Maquiavel falamos. Isso é necessário porque esse autor apresenta discursos bastante distintos nas suas duas obras mais conhecidas: “O Príncipe” e os “Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio”1.
N'O Príncipe, Maquiavel não reluta em sugerir e recomendar os atos mais abomináveis para um governante manter-se no poder. Nesse livro, em mais de uma ocasião, Maquiavel recomenda a um príncipe, que recém conquistou um estado, que “extinga o sangue”2 do príncipe deposto (MACHIAVELLI, s.d., p.30). Nessa obra, nenhuma “razão de estado” ou teoria do “mal menor” sequer é apresentada como justificativa para tais ações. A única motivação fornecida n'O Príncipe para ações imorais é a manutenção do poder pessoal do governante. Note-se também que O Príncipe não é um livro de crônicas presentes ou passadas. O Príncipe pertence ao gênero literário dos livros de conselhos aos príncipes e nobres, tão em voga na Renascença (LIMONGI, 2006, p.58). Maquiavel, n'O Príncipe, claramente não está apenas narrando atos imorais que ocorreram em algum lugar no passado. Ele está ativamente sugerindo ao seu leitor que empregue esses métodos sempre que a necessidade pedi-los.
Já os Discorsi pertencem a outro gênero literário. Os Discorsi são um estudo político da Itália renascentista, a época de Maquiavel, ilustrados com os sucessos da Roma antiga, tal como narrados pelo historiador Tito Lívio. Conforme o espírito da Renascença, a Antiguidade clássica forneceu aos séculos XV e XVI inspiração artística e também formas de pensamento políticas e jurídicas. Nos Discorsi, porém, ao contrário d'O Príncipe, Maquiavel é bastante mais comedido quanto a endossar atos imorais, como assassinatos políticos, por exemplo. Mais importante, contudo, nos Discorsi, ao contrário d'O Príncipe, a imoralidade apresenta-se justificada, se e quando resultar na grandeza da pátria e na prosperidade da nação. Essa continua sendo uma postura polêmica e revolucionária para sua época, mas é substancialmente diferente e por vezes até contraditória em relação à que aparece n'O Príncipe3.
N'O Príncipe, a religião mal é citada e a impressão que se tem é que a religião é irrelevante para Maquiavel ou, quando muito, é apenas mais um acessório de que o príncipe deve adornar-se para iludir os outros. Por outro lado, nos Discorsi, Maquiavel dedica cinco capítulos, do XI ao XV4, à importância da religião para a vida social e política do estado. Ainda que breves, os comentários de Maquiavel sobre a religião são interessantes e formam a base da “revolução maquiaveliana” no pensamento político europeu.
Até Maquiavel, o pensamento político europeu era voltado à realização do bem comum. Mas entendia-se que o maior bem que um Homem pode alcançar era a glória celeste. Assim, as ações dos governantes deveriam promover a prosperidade material, mas acima de tudo deveriam criar condições que levassem à salvação das almas de seus governados. Consequentemente, os manuais de métodos de governar e livros de conselhos, escritos por contemporâneos de Maquiavel, são unânimes em recomendar aos príncipes que se guiem pelas virtudes cristãs e se abstenham de fazer o mal mesmo que daí derive um bem maior (SKINNER, 1992). É a primazia do transcendente. É a subordinação da práxis à contemplação.
Nos Discorsi, a religiosidade é bastante elogiada na medida em que ela incita os homens à ação ou oferece sanção superior a leis e normas que do contrário seriam desobedecidas ou postas em discussão. Assim, no capítulo XI, o segundo rei de Roma, Numa, é elogiado por ter dado ao povo romano excelentes leis. Ao dizer à plebe que aquelas leis haviam-lhe sido ditadas por uma ninfa enviada pelos deuses, o Rei Numa garantiu a obediência do povo crédulo, coisa que sua autoridade pessoal sozinha não conseguiria fazer. Nos capítulos seguintes, Maquiavel volta a apresentar outros exemplos da história latina onde a antiga religião pagã foi instrumentalizada para fins políticos e militares. Sem dúvida, Maquiavel propõe que se use a religião como instrumento da política e, sem dúvida, a religião, por ser capaz de mobilizar profundos e poderosos sentimentos humanos, presta-se a isso. Assim, com Maquiavel, a práxis torna-se não só independente da teoria, mas até mesmo superior a ela. Pelo bem da Pátria, a moral pode ser relativizada e a mais torpe das ações justificada.
Em diversos trechos dos Discorsi, Maquiavel parece fazer várias e pesadas críticas ao Cristianismo. Segundo ele, essa religião enfraqueceu os Homens que passaram então a buscar a glória celeste e não mais a terrestre, como acontecia, segundo ele, nos tempos da religião pagã. Essa crítica não só é infundada como também é infundado o parecer de que Maquiavel estivesse criticando o Cristianismo per si. Vejamos em seguida.
Há uma diferença óbvia entre religiosidade e credulidade a qual aparentemente deve ter passado despercebida a Maquiavel. Todos os exemplos que ele apresenta sobre instrumentalização da religião são na verdade baseados na credulidade popular e provavelmente será possível encontrar casos semelhantes (de uso político-militar da credulidade das massas para benefício do Estado) em todas as religiões e até mesmo em sociedades atéias e laicas.5 Provavelmente, Maquiavel, não sendo um pensador conceitualmente rigoroso, usa a palavra religião como sinônimo de superstição. O que ele lamenta, portanto, é que o Cristianismo, tendo ao longo dos séculos eliminado, ou melhor, diminuído, o conteúdo supersticioso da religiosidade popular, tornou o povo menos sujeito a manipulações políticas.
É incompreensível que Maquiavel advogue seriamente que a crença na glória celeste seja algo politicamente negativo para o Estado. Na verdade, a crença na felicidade extra-mundo é fonte de enorme energia social e a História mostra diversos exemplos de como essa crença, quer no Cristianismo ou em outras religiões, foi usada para a execução de políticas de Estado6. Além disso, no capítulo XII dos Discorsi, Maquiavel escreve:


Se a religião se tivesse podido manter na república cristã tal como seu divino fundador a estabelecera, os Estados que a professavam teriam sido bem felizes. Contudo, a religião decaiu muito. Se examinássemos o espírito primitivo da religião, observando como a prática atual dela se afasta, concluiríamos, sem dúvida, que chegamos ao momento da sua ruína e do seu castigo. (…) os maus exemplos da corte romana [o papado] extinguiram neste país, a devoção e a religião, que trouxe como consequência muitos inconvenientes e distúrbios.” (MAQUIAVEL, 1982, p.62)


Esse trecho, e outros de teor análogo, deixam claro que quando Maquiavel critica o Cristianismo, ele o faz pensando na prática cristã de seu país e de sua época e não no Cristianismo por si próprio. Não faz sentido dizer que a devoção religiosa foi extinta na Itália e ao mesmo tempo criticar o Cristianismo pelos males de que padece a Itália. Analogamente, quando Maquiavel critica a igreja, ele está claramente criticando o clero de seu tempo e não a Igreja, Corpo Místico de Cristo, em si. Sabendo como se comportava a hierarquia eclesiástica na Itália renascentista, é impossível não concordar, nesse ponto específico, com Maquiavel. Porém, note-se que em nenhum momento Maquiavel afirma que o paganismo romano é doutrinalmente superior ao Cristianismo. Ademais, se Maquiavel possuia conhecimentos detalhados sobre a religião romana, ele os guardou para si pois não há nos Discorsi profundidade que permita qualquer discussão que vá além das práticas exteriores da religião pagã.


LIMONGI, M.I. Ética e política n'O Príncipe de Maquiavel. In: V. Figueiredo (org.), Seis filósofos na sala de aula. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2006, p. 53-79.


MACHIAVELLI, N. O Príncipe. Trad. de L. Xavier. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d., 164p.


MAQUIAVEL, N. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. de S. Bath, 2 ed. Brasília: UnB, 1982, 436p.


PADOVANI, U. & CASTAGNOLA, L. História da filosofia. 8 ed., São Paulo: Melhoramentos. 1970, 587p.


SKINNER, Q. Machiavelli. In: K. Thomas (ed.), Great political thinkers. Oxford: Oxford University, 1992, p.1-106.


1Também conhecidos pela primeira palavra do título original em italiano “Discorsi sopra la prima deca...”.
2Isto é: assassinar os descendentes e possíveis herdeiros do príncipe destronado.
3Aparentemente, Maquiavel não tencionava publicar O Príncipe. Ele fez apenas um exemplar desse livro, o qual foi oferecido privadamente ao Duque de Florença, Lourenço de Médici, neto de Lourenço, o Magnífico. Esquecido entre os pertences do Duque, O Príncipe só foi publicado décadas depois, quando Maquiavel já havia falecido. Já os Discorsi foram publicados ainda em vida de seu autor.
4Seguindo a moda de sua época, os capítulos dos Discorsi são muito curtos. Esses cinco capítulos ocupam pouco mais de 10 páginas de um livro em formato atual.
5En passant, ademais, constitui um óbvio elogio para os Cristãos o serem menos crédulos que os pagãos da antiguidade.
6As Cruzadas da Idade Média são o exemplo mais óbvio. É interessante notar que a crítica marxista ao Cristianismo é diametralmente oposta à de Maquiavel. Segundo os marxistas, ao acenar com a recompensa após a morte, o Cristianismo permite que o povo seja facilmente manipulado pelas elites. Já Maquiavel, por outro lado, julgando pelos exemplos dados, parece criticar o Cristianismo justamente por este dificultar o uso político-militar das massas.

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