Antes que se rompa o fio...

Antes que se rompa o fio...:


(Rubem Alves)

O telefone chamou e deu a notícia: você ficará diferente de todos nós. Nós, que continuamos automáticos e seguros a andar pela planície, repetindo as mesmas rotinas do dia: o café da manhã, o jornal, o carro precisa ser lavado, o que vamos ter para o almoço?, a correspondência, a lamentação sobre a crise econômica, que faremos no próximo fim de semana? Mas de repente tudo isso cessou para você, pois você está pendurado sobre o abismo, preso por um tênue fio, contemplando a grande escuridão. Só nos resta olhar e esperar. E a alma se encheu de uma imensa tristeza ante a possibilidade de um adeus. Mas eu não quero lhe dizer adeus, pois a sua presença faz parte da nossa alegria. E, no entanto, é isso que nós somos, sem que tenhamos coragem para dizê-lo: um adeus. É por isso que precisamos dos poetas. Pois eles são aqueles que tecem as suas palavras em volta do frágil fio que nos amarra sobre o abismo. Eles sabem que em nosso corpo mora um adeus. De repente, sem nenhum anúncio.

Mas não é absurdo? Este “de repente”? Já disse que não quero que ela venha súbita. O que espanta a todos os que me ouvem, que dizem que o melhor é que ela venha sem avisar e nos apague bem no meio de uma risada ou de um ritual de amor. Acho mesmo é que eles têm medo dos pensamentos que pensariam no tempo da espera. Pela vida inteira se recusaram a conversar com a Morte e se sentiriam enlouquecidos com as perguntas da suprema filósofa. Melhor recebê-la como um golpe final, sem palavras, que faz cessar todos os pensamentos. Tive um amigo, Alexander Schmemann, teólogo místico russo que, informado pelo seu médico de que no seu cérebro havia um tumor inoperável e de que só lhe restavam seis meses de vida, disse: “É bom saber disso. Tenho tempo suficiente para celebrar a liturgia da morte.”

E desde esse momento se dedicou a fazer exatamente aquilo que sempre desejara fazer, não permitindo que coisa alguma o interrompesse: ler os livros que nunca lera, olhar a natureza com olhos que nunca tivera, ouvir suas músicas preferidas com ouvidos que acabavam de nascer.

Ainda há poucos dias, no meio de risos, cerveja gelada e picanha, éramos donos do mundo, percorríamos mapas, imaginávamos os lugares que veríamos e antegozávamos uma felicidade futura. Mas, de repente, não mais que de repente, o duro golpe na vida, e tudo se faz espuma.

Estava escrevendo uma crônica para o jornal quando o telefone deu a notícia.

Meus sentimentos fugiram do texto, e tudo o que eu havia escrito me pareceu tolo e sem sentido. Queria estar ao seu lado, segurar a sua mão. Mas você está longe – e fui então para a minha solidão.

Em outros tempos eu tinha medo da morte. E até disso isso numa pequena autobiografia que apareceu na última capa de um dos meus livros, o que provocou protestos indignados de pessoas religiosas que acham que a morte é melhor que a vida. Para elas, eu penso, cada morte é sempre um motivo de júbilo. “Está muito melhor agora”, dizem os tolos consoladores profissionais, nos velórios. O que me deixa perplexo, porque então as lágrimas não têm explicação. Deveriam, mesmo, é estar dando uma festa.

Meus sentimentos mudaram. A morte não mais me causa medo. O que ela me dá é uma imensa tristeza. Muitos, muitos anos atrás, quando minha filha Raquel não tinha mais que três anos – eu ainda estava dormindo –, ela me acordou com uma pergunta que eu nunca ouvira, uma pergunta de tal densidade poético-metafísica que tive a impressão de estar ouvindo uma voz vinda de séculos de sabedoria e não de uma menininha que começava a viver – é certo que coisa semelhante eu nunca haveria de ouvir da boca de um adulto: “Papai, quando você morrer, você vai sentir saudades?”. Ante o meu espanto sem palavras, ela acrescentou: “Mas não chore não. Eu vou te abraçar...”. Ela entendera que a dor da morte não é a dor do medo. É a dor da saudade.

Imaginar a ausência das coisas que amamos: a cerca para ser consertada, a horta para ser cuidada, o aquário para ser limpo, os quadros a serem pendurados... Ah! A vida é bela! O mundo é belo! É por isso que toda despedida é triste. E é isto que eu sinto: que a morte é uma saudade sem remédio.

Desta distância onde estou quero lhe dizer isto: você faz parte da maravilha do mundo. É preciso que você fique, para que a saudade seja, pelo menos, adiada. Pois isto é o máximo que podemos fazer: adiar a saudade. E, quando isso acontecer, só nos restará fazer a mais inútil de todas as coisas: chorar...

Até lá, celebraremos a vida.
.....................................................................................

(Texto de Rubem Alves, psicanalista e escritor, publicado pela Revista Psique, fevereiro/2011, página 66)

Nenhum comentário:

Arquivo