Declaração de amor


Quando fez 80 anos a família juntou-se toda para celebrar, numa algazarra que ele ouvia vagamente, naquele jeito que a doença lhe deixara de estar presente, silencioso, de querer sossego com todos à volta. Alheava-se, não gostava que o vissem debilitado, não queria que as suas mãos formidáveis lhe desobedecessem e deixassem cair os copos ou se recusassem a segurar a faca com firmeza.

Mas festa é festa, e ele vestiu--se a rigor e sentou-se à cabeceira da mesa.

Na altura do brinde todos pensaram que ele não ia falar e, por uma vez, não se fazia silêncio para ouvir um dos seus discursos, sempre tão divertidos, em que misturava referências de filmes, livros e trocadilhos, a desafiar a memória comum da família, que depois ficava a decifrá-los até ele acabar as discussões.

Mas ele levantou-se a custo, pegou na taça com a mão trémula, ergueu-a e ficou assim um momento, como perplexo com a penumbra da sua memória.

Virou-se então para a mulher, sua paixão desde menino, e disse:

"Só quero agradecer a Deus ter-me permitido amar tanto esta mulher. Para tão grande amor foi curta a vida…"

E sentou-se, de novo alheado, como se as palavras tivessem saído sozinhas.
Foi o discurso mais bonito da sua vida.
Suzana Toscano, ionline15 Fev 2013

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