Há dias, alguém me escrevia numa breve mensagem: 'que Deus brilhe em nosso olhar'!
Isso fez-me refletir sobre o que será um olhar de encanto, isto é, onde brilhe Deus? Como pode Deus brilhar em nós, se não houver um olhar de encanto? Deus brilha no meu olhar? Como vejo, nos outros um olhar de encanto e os outros com esse olhar de encanto? Há ou pode haver malícia num olhar de encanto? Se tivéssemos de apresentar dois ou três exemplos, quem apresentaríamos como tendo um olhar de encanto?
- De fato, vivemos num mundo marcado por olhares muito diversos e nem sempre encontramos quem nos faça ver, com verdade e sinceridade, esse olhar de encanto, dado que poderá ser encantador, mas interesseiro, fascinante mas perigoso, marcante mas malicioso…
- Mesmo que a vida possa ser quase sempre dura e andemos de olhar turvo (isto é, sombrio e ensombrado), nós, cristãos, temos de cultivar um olhar sadio porque alicerçado no olhar de Cristo, que, como se diz tantas vezes no Evangelho (sobretudo de são Marcos), tinha um olhar de simpatia, um olhar de compaixão e um olhar de liberdade e de libertação.
- É verdade que os acontecimentos e as pessoas nos podem trazer, por vezes, menos boas recordações e isso nos pode cristalizar numa certa resistência à dádiva e à partilha para com os outros. Também as mais díspares situações humanas e culturais podem-nos endurecer, gerando um ambiente onde nos defendemos e podemos situar-nos mais em atitude de ataque do que na confiança para com aqueles/as que Deus coloca no nosso caminho, seja de forma fortuita ou mais regular.
= Como poderemos, então, cultivar um olhar de encanto, hoje?
Antes de mais para que esse olhar de encanto seja sincero e possa ser vivido de olhos levantados, temos de acreditar em nós mesmos, reconhecendo quem somos, com qualidades e defeitos, com bons e maus momentos, com virtudes e erros, com necessidade de arrependimento, de dar e receber o perdão…
O olhar de encanto precisa de ser cultivado pela verdade e nunca pactuando com a mentira, tanto para connosco mesmos como na relação com os outros. Estes não podem ser entendidos como adversários nem como concorrentes e tão pouco como inimigos.
Temos de saber levantar o olhar para que consigamos perceber os obstáculos que se colocam no nosso caminho, pois se andarmos de olhos pregados no chão corremos mais o risco de tropeçar e estatelar-nos, magoando e saindo magoados… sem vermos as pedras de tropeço a tempo.
Tal como se diz num certo aforisma popular: precisamos mais de olhar pelo vidro dianteiro do carro (vulgo para-brisas) do que pelo retrovisor, pois, este damos uma visão do (já) passado, ao contrário e em ponto reduzido, enquanto aquele nos faz ver o que está à frente, em dimensão real, enfrentando-o com naturalidade… sem subterfúgios nem medos!
Num contexto cristão/católico olhemos a passagem de Jesus na Cruz com a mãe e o discípulo. Ali, do alto da Cruz, Jesus tem um olhar de encanto sobre sua mãe e o discípulo que Ele amava – reparemos nesta designação com que o autor do quarto evangelho se refere a si mesmo e nos deixa espaço para que nos incluamos nessa qualidade perante Jesus – tentando perceber esse olhar terno e elevado, profundo e sereno, intenso e eterno. Não deveriam ser estas as qualidades do nosso olhar de encanto? Como poderemos viver a nossa fé se não tivermos um olhar de encanto sobre nós mesmos, sobre os outros e até sobre Deus?
Para terminar uma breve estória: havia uma jovem que se preocupava em saber de que cor eram os olhos de Jesus. Ela pensava: eram azuis, castanhos, pretos…de que cor será que eram? Nas orações, ela distraía-se e ficava longo tempo a pensar nisso e tentando descobrir. Um dia, ela estava a rezar, pedindo justamente essa graça, e de repente parece que ouviu Jesus dizer-lhe: 'Filha, meus olhos têm a cor dos olhos de cada irmão e irmã que encontras'. Dali para frente, ela desistiu de querer saber a cor dos olhos de Jesus, e começou a olhar os olhos de cada pessoa que encontrava.
Afinal, um olhar de encanto é muito mais do que um olhar encantador, pois este pode seduzir e levar ao mal, enquanto aquele eleva e faz-nos encontrar Deus… nas pequenas como nas grandes coisas, isto é, sempre.
António Sílvio Couto (asilviocouto@gmail.com)
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