Devoção às Almas no Purgatório – Parte I

Na mensagem de Natal do ano passado, traduzi um texto introdutório ao livro Purgatório, de Pe. Frederick William Faber, da Congregação do Oratório de Londres. Começo agora a traduzir o livro, pouco a pouco, e a publicá-lo no blog. Espero que surja alguma editora católica com interesse em publicá-lo. Se não surgir, continuo a tradução até o fim e depois coloco o pdf do livro para download. É um livro extraordinário desse ilustre desconhecido do público brasileiro. Mais um católico inglês do século XIX de quem, como Chesterton, quase nenhum brasileiro ouviu falar. A propósito, Chesterton conhecia as obras de Pe. Faber e as cita, em seus escritos, principalmente os maravilhosos hinos devocionais que o padre oratoriano compunha.

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Embora estejamos misericordiosamente isentos de descer ao Inferno para buscar e promover os interesses de Jesus, coisa muito diferente ocorre com o Purgatório.

Se o Céu e a terra estão repletos da glória de Deus, assim também se passa com aquele lugar muito melancólico e interessante, onde os prisioneiros da esperança são impedidos, pela amorosa justiça de seu Salvador, de desfrutarem da Visão Beatífica; e se podemos fomentar os interesses de Jesus na terra e no Céu, podemos quase ousar dizer que somos capazes de fazer ainda mais no Purgatório. E o que estou tentando mostrar neste tratado é como você pode auxiliar Deus pela oração e práticas de devoção, qualquer que seja sua ocupação e missão; e todas estas práticas se aplicam especialmente ao Purgatório. Pois apesar de alguns teólogos afirmarem que embora as Santas Almas não ofereçam nenhum obstáculo, o efeito da oração por elas não é infalível, não obstante ser muito mais certo do que o efeito da oração pela conversão dos pecadores ainda sobre a terra, que é tão frequentemente frustrado pela sua perversidade e más disposições. De qualquer forma, o que desejo mostrar é isto: que cada um de nós – sem aspirar nada acima de nossa graça, sem austeridades para as quais não temos coragem, sem dons sobrenaturais que não alegamos – podemos, por meio de um sentimento amoroso e práticas de saudável devoção católica, fazer grandes coisas, coisas tão grandes que parecem inacreditáveis, para a glória de Deus, pelos interesses de Jesus e pelo bem das almas.

Rezar pelos pecadores ou pelas Santas Almas?


Estaria eu deixando o assunto muito incompleto se não considerasse, com certo detalhe, a devoção às Santas Almas no Purgatório; e tratarei, não tanto de práticas particulares, que podem ser encontradas nos manuais, mas do espírito da devoção mesma.

Rosignoli, em seu livro Maravilhas de Deus no Purgatório (Opere 1:710), que ele escreveu a pedido do Beato Sebatian Valfré do Oratório de Turim, descreve, dos anais Dominicanos, um interessante debate entre dois bons frades acerca dos respectivos méritos da devoção à conversão dos pecadores e da devoção às Santas Almas.

Irmão Bertrando era um grande defensor dos pobres pecadores, celebrando constantemente Missas para eles, e oferecendo todas as suas orações e penitências para obter-lhes a graça da conversão. “Os pecadores”, ele dizia, “sem a graça, estão num estado de perdição. Espíritos maus estão continuamente lhes tramando emboscadas, para privá-los da Visão Beatífica e carregá-los para os tormentos eternos. Nosso Senhor desceu do Céu e morreu a mais dolorosa morte por eles. Que trabalho pode ser mais elevado que imitá-Lo e cooperar com Ele na salvação das almas? Quando uma alma é perdida, o preço de sua redenção é também perdido. Ora, mas as almas no Purgatório estão salvas. Elas estão seguras de sua salvação eterna. É verdade que estão jogadas num mar de dores, mas elas estão seguras de saírem de lá em algum momento. Elas são amigas de Deus, ao passo que os pecadores são Seus inimigos, e ser inimigo de Deus é a maior miséria da criação.”

Irmão Benedetto era igualmente um defensor entusiasta das almas sofredoras. Ele oferecia a elas todas as suas Missas livres, assim como suas orações e penitências. Os pecadores, ele dizia, estão presos pelas correntes de sua própria vontade. Poderiam abandonar o pecado se desejassem. O jugo foi de sua escolha, ao passo que os mortos estão de mãos e pés atados contra sua vontade, nos mais atrozes sofrimentos.

“Caro irmão Bertando, diga-me – suponha que haja dois mendigos, um saudável e forte, que poderia usar suas mãos e trabalhar se quisesse, mas escolha sofrer a pobreza ao invés de abandonar as doçuras da ociosidade; e outro, doente, aleijado e indefeso, que em sua lastimosa condição não poderia fazer nada exceto suplicar ajuda com choro e lágrimas – qual dos dois mereceria maior compaixão, especialmente se o doente estivesse sofrendo as mais intoleráveis agonias? Ora, isto é justamente a situação dos pecadores e das Santas Almas. Estas estão sofrendo um martírio excruciante, e não têm meios de se ajudarem. É verdade que elas mereceram essas dores por seus pecados, mas elas já estão agora purificadas daqueles pecados. Elas devem ter se voltado à graça de Deus antes de morrerem, senão não teriam sido salvas. São agora muito queridas, inexprimivelmente queridas, a Deus; e certamente a caridade, bem ordenada, deve seguir a sábio amor da Divina Vontade e amar mais o que Ele mais ama.”

O irmão Bertrando, contudo, não cederia, embora ele não pudesse formular uma resposta satisfatória à objeção do amigo. Mas, na noite seguinte, ele teve uma aparição que parece tê-lo convencido, tanto que daquele momento em diante ele alterou sua prática, e passou a oferecer todas as suas Missas, orações e penitências, às Santas Almas. Parece que a autoridade de Santo Tomás pode ser citada em apoio ao irmão Benedetto, quando ele diz: “Rezar pelos mortos é mais aceitável que pelos vivos, pois os mortos estão em grande necessidade disso e não podem se ajudar, como podem os vivos.” (Supp. 3a. Parte, q. 71, art.5 ad 3).




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