A mulher para Freud e para a Igreja


Entre as muitas coisas de que a Igreja é acusada está o ter desvalorizado a mulher. Em síntese, teria sido a mulher durante séculos relegada a um plano muitíssimo inferior ao do homem, tolhida em sua liberdade, reprimida em sua sexualidade, obstada em seu acesso à cultura, constrangida a um papel social subalterno, etc. Tratar-se-ia, portanto, de alguém sem voz política, sem prazer, sem lazer, sem vida interior e, para dizer o mínimo, um mero capacho do homem. Alguém com incontáveis deveres massacrantes e secundários, porém quase sem direitos.

Ignora quem compra de maneira acrítica esta visão que, por exemplo, durante a Idade Média a mulher chegou a ser rainha e senhora do destino de povos inteiros, princesa, administradora de vastas terras, politicamente influente, artesã, poetisa, escritora, educadora, guerreira, mística, Santa. E não apenas no medievo, mas tanto antes como depois, graças ao influxo dos valores evangélicos custodiados pela Igreja, a mulher exerceu papel histórico notável, de extraordinária influência espiritual e política: Isabel de Castela, Santa Joana D’Arc, Santa Rita de Cássia, Santa Catarina de Sena, Santa Teresa de Ávila, Santa Brígida da Suécia e incontáveis outras grandes mulheres dão-nos exemplos marcantes da condição feminina durante o longo período da Cristandade católica.

Diga-se que algumas religiosas do medievo eram extremamente instruídas e rivalizavam em saber com os sábios monges de então, educadores do mundo. Quem não leu o clássico La femme au temps des cathédrales, de Règine Pernoud, é analfabeto na matéria e deveria calar o bico antes de dizer aberrações como, por exemplo, a de que a mulher segundo a Igreja não tinha alma. Naquela e noutras obras mostra a grande historiadora francesa que as mulheres exerciam, até mesmo na vida laica, um poder que deixaria os homens de hoje boquiabertos. E ademais chegaram a ser artistas de grande talento, além de poliglotas. Heloísa, diz-nos Régine Pernoud, ensinava às suas monjas o grego e o hebraico. É dessa época uma boa quantidade de obras literárias escritas por mulheres, como seis conhecidas comédias em prosa rimada atribuídas à abadessa Hrostsvitha.

O mundo contemporâneo, erigido sob os auspícios de Nietzsche, Freud e Marx – ou seja, niilismo, psicanálise e comunismo – se jacta de ter redescoberto a mulher, revalorizado as suas potencialidades, trazido a ela, enfim, um papel ativo na vida social. Mas se porventura olhamos de perto o que era a mulher na concepção destes ilustríssimos construtores da mentalidade hodierna, caímos literalmente para trás, estupefatos com tamanhas barbaridades. Contentemo-nos neste breve artigo com Freud, e comecemos dizendo que, para o ilustre doutor de Viena, o desenvolvimento psíquico da mulher é torto, muito mais problemático que o do homem, devido ao fato de que a mulher precisa mudar o objeto sexual “natural” inicial, ou seja, a mãe, e trocá-lo pelo pai, gerando com isto o complexo de Édipo invertido.

Lembra-nos Martín Echavarría no excepcionalCorrientes de Psicología Contemporánea que,segundo Freud, a mulher não chega a desenvolver uma consciência moral sólida, nem é capaz de fazer uso elevado da razão, motivo pelo qual não teria trazido nenhuma contribuição relevante para a história da humanidade, em particular devido ao influxo da falta do pênis em sua estrutura psicossomática. Em síntese, o motivo pelo qual as mulheres jamais poderiam desenvolver-se completamente como seres humanos estaria no fato de que não possuem o chamado “temor à castração”, embora tragam em seu íntimo uma ontológica e primacial inveja do pênis.

A certa altura das Novas Conferências sobre a Psicanálise, lê-se em Freud esta famosa passagem: “O fato de que seja preciso atribuir à mulher escasso sentido de justiça tem íntima relação com o predomínio da inveja [do pênis] em sua vida anímica”. Noutra parte diz-nos o Dr. Sigmund que as mulheres, devido ao fato de terem um superego deficitário, possuem interesses sociais débeis e pouca ou nenhuma aptidão para a sublimação. Ora, mais divertido do que tais fantasmáticas considerações com roupagem científica é ler algumas páginas de Jacques Derrida sobre o que ele considera a concepção logofalocêntrica de Freud. Nas vezes em que fiz isto tive a clara sensação de que a minha massa encefálica escapulia por algum libidinoso orifício.

Outra conhecidíssima idéia freudiana é a de que a mulher, chegando aos 30 anos, nada mais tem a desenvolver. Em palavras simples: as balzaquianas de qualquer época seriam entes quase estéreis, impossíveis de modificar. Nada haveria nelas de reais potencialidades a explorar, razão pela qual a mulher a partir desta idade mal poderia ser psicanalisada, ao passo que o homem aos 30 anos ainda possuiria uma dinâmica psíquica considerável. Em vista disso, com doce ironia nos recorda Martín Echavarría que, para desgraça de Freud, a maior parcela de seus discípulos foi composta de mulheres – sendo a imensa maioria de seus pacientes… mulheres neuróticas![1]

Destas e de outras passagens da obra de Freud se depreende – isto se unirmos, com a frieza da boa e velha lógica, as principais premissas às conclusões – o seguinte: de acordo com o Dr. Vienense, a mulher possui dignidade muito inferior à do homem, devido a um problema radical absolutamente insanável. Ela é um ente incapaz de assumir qualquer papel de relevância nas sociedades, e, o que ainda é mais dramático, tem a alma mutilada, inapta para perceber a beleza moral ou assimilar os conceitos mais abstratos.

Para a Igreja, em contrapartida, a mulher se eleva à dignidade de Mãe do próprio Deus, modelo de feminilidade e de fortaleza incomparáveis, que, ao ser imitado com fervor ao longo de séculos, acabou por gerar um sem-número de mulheres notáveis e de grande influência espiritual e política – cujas obras denotam riquíssimo universo psicológico e invulgar capacidade intelectual.

Freud seria com toda razão barrado no Castelo Interior de Santa Teresa de Ávila, por estar previamente incapacitado para compreendê-lo em seus elevados princípios. E o seria justamente porque nele não existem moradas para quem por vontade própria embotou a alma com conceitos auto-referentes – que vão das vicissitudes de uma sexualidade infantil perversa à formal incapacidade de amor desinteressado, não libidinoso; da impossibilidade de educar o espírito ao fato de que, em sua teoria, o homem é um ente malogrado, no qual a única “felicidade” possível é a tomada de consciência do radical desejo de satisfação que o constitui.

Desejo que, em suas conhecidas palavras, representa a aspiração do homem a ocupar o lugar do Pai, equivalente simbólico de Deus.


Sidney Silveira

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