São Vicente de Lerins |
COMMONITORIUM
Notas para conhecer a verdadeira Fé
Notas para conhecer a verdadeira Fé
Introdução
1. Dado que a Escritura nos aconselha: "Interroga teu pai e ele te contará; os teus avós, e eles te dirão". (Dt 32,7); "Ouve as palavras dos sábios" (Pr22,17); e também: "Meu filho, não te esqueças da minha lei, e guarda no teu coração os meus preceitos" (Pr 3,1), a mim, Peregrino, último entre todos os servos de Deus, me parece que é coisa de não pouca utilidade escrever os ensinamentos que recebi fielmente dos Santos Padres. Para mim isto é absolutamente imprescindível, a causa de minha debilidade, para ter assim ao alcance das mãos um auxílio que, com uma leitura assídua, supra as deficiências de minha memória. Induzem-me a empreender este trabalho, ademais, não só a utilidade desta obra, mas também a consideração do tempo e a oportunidade do lugar. Em relação ao tempo, já que ele nos tira tudo o que há de humano, também nós devemos, em compensação, roubar-lhe algo que nos seja gozoso para a vida eterna, tanto mais quanto que ver aproximar-se o terrível juízo divino nos convida a pôr maior empenho no estudo de nossa Fé; por outro lado, a astúcia dos novos hereges reclama de nós uma vigilância e uma atenção cada vez maiores. Em relação ao lugar, porque afastados da multidão e da agitação da cidade,habitamos num lugar bem separado no qual, na cela tranqüila de um mosteiro, se pode pôr em prática, sem medo de distrair-se, o que canta o salmista: "Desisti – disse ele – e reconhecei que sou Deus". (Sl 45,11) Aqui tudo se harmoniza para que eu alcance minhas aspirações. Durante muito tempo fui perturbado pelas diferentes e tristes peripécias da vida secular. Graças à inspiração de Jesus Cristo, consegui por fim refugiar-me no porto da Religião, sempre muito seguro para todos. Deixados para trás os ventos da vaidade e do orgulho, agora me esforço em aplacar a Deus mediante o sacrifício da humildade cristã, para poder assim evitar não só os naufrágios da vida presente, mas também as chamas da vida futura. Posta minha confiança no Senhor, desejo, pois, iniciar a obra que me insta, cuja finalidade é colocar por escrito tudo que nos têm sido transmitido por nossos pais e que temos recebido em depósito. Meu intento é expor cada coisa com a fidelidade de um relator, e não com a presunção de querer fazer uma obra original. Não obstante, me aterei a esta lei ao escrever: não dizer tudo, mas resumir o essencial com estilo fácil e acessível, prescindindo da elegância e do maneirsimo, de maneira que a maior parte das idéias pareçam melhor enunciadas que explicadas. Que escrevam brilhantemente e com finura aqueles que se sentem levados a isto pela profissão ou pela confiança em seu próprio talento. No que a mim se refere, já tenho muito em preparar estas anotações para ajudar a minha memória,ou melhor, a minha falta de memória. Não obstante, não deixarei de me empenhar, com a ajuda de Deus, em corrigi-las e completá-las cada dia, meditando no que tenho aprendido. Assim, pois,caso estas notas se percam ou acabem caindo em mãos de pessoas santas, rogo a estas que não se apressem em jogar-me na cara que algo do que nestas notas haja espera todavia ser retificado e corrigido, segundo minha promessa.
Regra para distinguir a Verdade Católica do erro
2. Havendo interrogado com freqüência e com maior cuidado e atenção a inúmeras pessoas, sobressalentes em santidade e doutrina, sobre como distinguir por meio de uma regra segura, geral e normativa, a verdade da Fé Católica da falsidade perversa da heresia, quase todas me têm dado a mesma resposta: "Todo cristão que queira desmascarar as intrigas dos hereges que brotam ao nosso redor,evitar suas armadilhas e se manter íntegro e incólume numa fé incontaminada, deve,com a ajuda de Deus, apetrechar sua fé de duas maneiras: com a autoridade da lei divina ante tudo, e com a tradição da Igreja Católica". Sem embargo, alguém poderia objetar: Posto que o Cânon das Escrituras é em si mais que suficientemente perfeito para tudo, que necessidade há de se acrescentar a autoridade da interpretação da Igreja? Precisamente porque a Escritura, por causa de sua mesma sublimidade, não é entendida por todos de modo idêntico e universal. De fato, as mesmas palavras são interpretadas de maneira diferente por uns e por outros. Se pode dizer que tantas são as interpretações quantos são os leitores. Vemos, por exemplo, que Novaciano explica a Escritura de um modo, Sabélio de outro, Donato, Eunomio, Macedônio, deoutro; e de maneira diversa a interpretam Fotino, Apolinar, Prisciliano, Joviano,Pelágio, Celestino, e em nossos dias, Nestório. É pois, sumamente necessário, ante as múltiplas e arrevesadas tortuosidades do erro, que a interpretação dos Profetas e dos Apóstolos se faça seguindo a pauta do sentir católico. Na Igreja Católica deve-se ter maior cuidado para manter aquilo em que se crê em todas as partes, sempre e por todos. Isto é a verdadeira e propriamente católico, segundo a idéia de universalidade que se encerra na mesma etimologia da palavra. Mas isto se conseguirá se nós seguimos a universalidade, a antiguidade e o consenso geral. Seguiremos a universalidade se confessamos como verdadeira e única fé a que a Igreja inteira professa em todo o mundo; a antiguidade, se não nos separamos de nenhuma forma dos sentimentos que notoriamente proclamaram nossos santos predecessores e pais; o consenso geral, por último, se, nesta mesma antiguidade, abraçamos as definições e as doutrinas de todos, ou de quase todos, os Bispos e Mestres.
Exemplo de como aplicar a regra
3. Qual deverá ser a conduta de um cristão católico, se alguma pequena parte da Igreja se separa da comunhão na Fé universal?- Não cabe dúvida de que deverá antepor a saúde do corpo inteiro a um membro podre e contagioso. Mas, e se for uma novidade herética que não está limitada a um pequeno grupo, mas que ameaça contagiar à Igreja toda? - Em tal caso, o cristão deverá fazer todo o possível para agarrar-se à antiguidade, a qual não pode evidentemente ser alterada por nenhuma nova mentira. E se na antiguidade se descobre que um erro tem sido compartilhado por muitas pessoas, ou inclusive toda uma cidade, ou por uma região inteira?- Neste caso porá o máximo cuidado em preferir os decretos - se os tiver - de um antigo Concílio Universal, à temeridade e à ignorância de todos aqueles. E se surge uma nova opinião acerca da qual nada tenha sido ainda definido? - Então indagará e confrontará as opiniões de nossos maiores, mas somente daqueles que sempre permaneceram na comunhão e na fé da única Igreja Católica e vieram a ser mestres provados da mesma. Tudo o que ache que, não por um ou dois somente, mas por todos juntos de pleno acordo, tenha sido mantido, escrito e ensinado abertamente, freqüente e constantemente, sabe que ele também pode crer sem vacilação alguma.
Fonte: LÉRINS, São Vicente de. Commonitorium - Notas para conhecer a verdadeira Fé. Do original "COMMONITORIO - Apuntes para conocer La Fe verdadeira". Texto traduzido do espanhol por Jorge Luis - http://tradicaoviva.blogspot.com; versão corrigida e editada, p.1-3. Disponível em: Santa Mãe de Deus
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Commonitorium: Regra para distinguir a Verdade Católica do erro
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