Em Cristo, Deus se comprometeu com o homem


Na semana passada, Fidel Castro perguntou ao Papa Bento XVI “que faz um Papa?” A pergunta veio depois da Missa na qual o Papa pronunciou uma homilia magnífica! Não só para as pessoas da Ilha, mas para nós todos...

No sermão insistiu na necessidade de obedecer à própria consciência e procurar a verdade; procura que “supõe sempre um exercício de liberdade autêntica.” Cobrou a necessidade de avançar, mais ainda, em matéria de liberdade religiosa. Colocou como exemplo o padre e pensador cubano Felix Varela, que “ensinou a seu povo a pensar” e se empenhou por indicar “o caminho para uma verdadeira transformação social: formar homens virtuosos para forjar uma nação digna e livre.” E, concluindo, disse: “Cuba e o mundo precisam de mudanças, mas estas só terão lugar se cada um estiver em condições de se interrogar acerca da verdade e se decidir a enveredar pelo caminho do amor, semeando reconciliação e fraternidade.”

Assim, pois, a pergunta de Fidel pareceria não enxergar o essencial ou até evitá-lo. Todavia, lembrei-me, na hora de ler sobre o assunto, daquele preconceito que considera que religião não tem ligação alguma com a vida cotidiana: como se o preconceituoso pergunta-se também “para que serve o Papa? ...para que serve Jesus Cristo? ...para que serve a religião?

Diante da necessidade de recuperar a industria brasileira, diante do discurso duplo com que alguns políticos agridem o estado de direito, diante do distorcido e baixo nível acadêmico do ensino publico, diante da difundida “terapia com cartão de credito”, diante da briga que muitos programas de TV mantém com a própria inteligência, diante do desafio de formar o caráter dos filhos num ambiente que valoriza sobretudo a esperteza(1), diante da mentalidade medíocre do “homem light”, diante do relativismo do “pensamento débil” que termina vivendo “encima do muro”, diante da banalidade (retratada no filme “Jogos Vorazes”, The Hunger Games/2012) que se  empolga com tudo e se compromete com nada, diante da “coisificação” das relações humanas (já apontada em “Tempos Modernos”, Modern Times/1936), diante da gritante exclusão de pessoas carentes do sistema de credito e de oportunidades culturais e laborais para alcançar uma vida digna... etcetera... e mais coisas, diante das quais para que “serve” a fé no Senhor Jesus Cristo?

A resposta do Santo Padre à pergunta de Fidel não foi “anódina”, como dizia uma austera reportagem de “Carta Capital” (Ed. de 4/3/2012). A visita pastoral toda foi resposta a essa pergunta... inclusive quando o Papa disse que o sistema marxista de governo de Cuba “não corresponde mais a realidade”. É como dizer ao diretor de uma revista de atualidade que suas análises não correspondem à realidade: a conclusão é lógica e está contida nas palavras do Papa: ou muda e melhora suas análises ou muda o perfil da revista para o gênero “fantasia”.

No entanto, voltando ao mundo real, a CNN reportou (28/3/2012) que a população cubana, depois da visita do Papa, embora ela não tenha sido política, espera mudanças na Ilha; tal esperança é animada por essa percepção (do senso comum, hoje pouco comum...) de que a religião traz sim consequências efetivas para o dia a dia. A religião, na sua missão própria que é o anuncio do Evangelho, comunica ideias; sem elas a religião deriva no fanatismo irracional ou no ativismo incapaz de “dar razão da sua esperança” (1 Pd 3, 15). Com elas e a partir delas, dialoga com a cultura e as culturas, e alavanca mudanças. Para os ativistas e pragmáticos de plantão poderia lembrar que “palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução” (Machado de Assis, em “Histórias sem data: primas de Sapucaia”)

Mas, demos mais um passo. Neste ponto gostaria de lhes dizer que por trás de todo assunto cotidiano há sempre algumas ideias ou uma visão particular sobre o homem, e por trás dessa visão há sempre uma questão religiosa.

Nessa Semana Santa, através da escuta da Paixão do Senhor narrada pelo Apóstolo São João, defrontaremo-nos com o Interrogatório de Pilatos a Jesus: no cerne do diálogo que o próprio Senhor Jesus conduz, Ele disse: “Para isso vim ao mundo: para dar testemunho da verdade” (Jo 18, 37). Já no Prólogo do Evangelho segundo São João se diz que o Senhor Jesus, o Verbo Encarnado, está “cheio da graça da verdade” e por Ele “a graça da verdade veio” (Jo 1, 14 e 17). Na visão de São João –segundo Ignace de La Potterie SJ-, há um só dom que Jesus Cristo traz aos homens: a graça da verdade. Essa verdade é a revelação definitiva  de Deus aos homens, por meio de seu Filho e no seu Filho, quem realiza a obra da salvação para que nos tornemos filhos de Deus. E essa verdade se revela especialmente no “amor até o fim” (cf. Jo 13, 1), manifestado na Cruz. Desta maneira o Senhor nos revela que “apenas por meio da sincera doação de si mesma, a criatura humana pode realizar-se plenamente (GS, 24). Consideremos a verdade e o amor, expressados no compromisso.

Vejamos um trecho da homilia do Santo Padre, do 28/3/2012: “A verdade é um anseio do ser humano, e procurá-la supõe sempre um exercício de liberdade autêntica. Muitos, todavia, preferem os atalhos e procuram evitar essa tarefa. Alguns, como Pôncio Pilatos, ironizam sobre a possibilidade de conhecer a verdade (cf. Jo 18, 38), proclamando a incapacidade do homem de alcançá-la ou negando que exista uma verdade para todos. Esta atitude, como no caso do ceticismo e do relativismo, produz uma transformação no coração, tornando as pessoas frias, vacilantes, distantes dos demais e fechadas em si mesmas. São pessoas que lavam as mãos, como o governador romano [Pilatos], e deixam correr o rio da história sem se comprometer.”

“Compromisso” expressa a ideia de fazer uma promessa, garantir algo, responsabilizar-se por algo ou alguém. “Comprometer-se” exige decidir livremente ficar disponível e estar disposto a assumir um vinculo e estabelecer uma aliança duradoura. Compromisso exige ousar se generoso.

É uma maravilhosa responsabilidade dos pais, e demais educadores, acompanhar os jovens para que eles conquistem essa liberdade interior, que lhes permita fazer escolhas autenticas, em coerência com a sua vocação de pessoas humanas e missão. A liberdade é um dom que precisa educação e treinamento no seu uso correto, para crescer na capacidade de comprometer-se no amor.

Nas “Cartas de Formação”, do padre e pensador Romano Guardini, encontrei, especialmente para os jovens, um singelo programa. “Três caminhos conduzem a liberdade: conhecimento, disciplina e comunidade.” O CONHECIMENTO diz respeito a “cravar o olhar no seu interior”; autoconhecimento; debruçar-se sobre a verdade de si mesmo (quem sou e como estou...). O próprio Senhor nos garante: “conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres” (Jo 8, 32). A DISCIPLINA que se conquista no habito de “fazer o que eu quero E querer o que eu devo fazer”. A COMUNIDADE refere-se a essa experiência de amizade verdadeira, na qual as pessoas se ajudam mutuamente a progredir no sentido do Bem, desejando superar toda inautenticidade e construindo a fidelidade a própria identidade. Lembremos o apelo do Apóstolo: “Vós fostes chamados à liberdade” (Gl 5, 13).

É o Senhor Jesus que nos ensina a “contestar o mal com a força do bem”. A Semana Santa toda é a vitória do compromisso de Deus conosco. Ele contesta a falta de compromisso de Pilatos e a indiferença preconceituosa e acomodada de muitas pessoas hoje chamadas “modernas”.

O “LAVA-PÉS” revela de uma maneira especial a totalidade da “obra” do Senhor Jesus: com a Encarnação Ele se abaixa (sem apegar-se a sua condição divina) tornando-se o nosso Próximo (como o Bom Samaritano, Lc 10, 29ss) comprometendo-se, solidarizando-se e carregando-nos e carregando todas as nossas limitações, para que livres e limpos delas, possamos elevarmo-nos até a Glória de Deus. O Senhor “saiu” e veio para que, próximo e em comunhão conosco, possamos decidir engajar nossas vidas na Sua Vida, e participar assim e agora da vida de eterno Amor. Não é só um discurso que nos comove e aciona moralmente para o Bem, mas trata-se de uma ação, de uma “obra” (todo o Acontecimento da vinda do Senhor Jesus) que busca nossas vidas e afazeres para que vivamos sem limites... O Senhor busca nossa liberdade para que sua “obra” continue “aproximando-se” de mais pessoas.

Lembremos que a Parábola do BOM SAMARITANO é resposta a uma pergunta sobre quem é o nosso próximo: o Senhor, indo além da casuística imediatista, escolhe revelar a identidade de todo ser humano: o homem é chamado a “ser” no Bom Samaritano: o homem é convidado a realizar-se plenamente como o Bom samaritano, sendo e vivendo como “próximo” de todos. É por isso que necessitamos do Senhor Jesus e celebrar sua “obra” (agora mesmo na “hora” da Semana Santa!), porque só em Jesus Cristo se “esclarece verdadeiramente o mistério do homem... (Ele) revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime” (GS, 22).

Então, que faz o Papa? Que faz Jesus Cristo? Que faz quem tem fé no Senhor? Exercita sua liberdade para disser e viver a experiência de São Paulo, Gl 2, 20: “vivo eu, mas não eu, é Cristo que vive em mim”...é Cristo que se aproxima e se compromete através de mim... é Cristo que se envolve, ousa, propõe, convoca, fala e ama através de mim!

Boa celebração da Páscoa do Senhor!

Pe. Héctor Velarde, SCV
vidacrista.org.br

(1) É oportuno assistir a “O Clube do Imperador”, The Emperor’s Club/2002; também: “Mãos talentosas”, Gifted Hands: the Bem Carson story/2009.

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