SERIEDADE NÃO É TRISTEZA (Quarto Domingo da Quaresma)

SERIEDADE NÃO É TRISTEZA (Quarto Domingo da Quaresma)
NA PAZ, A VERDADE  /  NA PAZ, A VERDADE

A. Na Cruz também há luz

  1. Afinal, a Cruz também reluz, a Cruz também é luz. É por isso que, quando a Cruz se ergue, todas as luzes se apagam. Há trevas que ensombram a terra, quando Jesus Se abeira da morte (cf Mc 15, 33), para que nos possamos fixar na Sua luz, na Sua luz que brilha na Cruz.

Só essa luz ilumina, só essa luz elimina. Só essa luz ilumina os nossos olhos e elimina a nossa cegueira. Na Cruz, está a luz do mundo (cf. Jo 8, 12), a luz para cada pessoa que está no mundo. Sem essa luz, todas as luzes cegam. Sem essa luz, todas as luzes iludem luz, sem dar luz.

 

  1. Não é por acaso que o Filho do homem é elevado (cf. Jo 3, 14). É do alto da Cruz que Ele irradia toda a luz. Jesus garante ao seu nocturno visitante Nicodemos que «todo aquele que acredita tem n'Ele a vida eterna»(Jo 3, 15). Essa luz que se acende na Cruz tem o nome de fé. E, na verdade, quanta fé é necessária quando parece que toda a luz se esconde!

Na primeira encíclica que assinou, o Papa Francisco apresenta a fé como uma luz que brilha no meio da escuridão. É essa a luz que nos guia. É olhando para a Cruz que nos sentimos iluminados. A Cruz é a melhor nova na suprema prova. É a mais bela notícia que emerge na maior provação. É quando tudo se apaga que tudo se ilumina. É quando parece que tudo acaba que tudo verdadeiramente (re)começa.

 

B. Na Quaresma também há alegria

 

3. Esta é uma luz que não resplandece tanto nos nossos olhos; esta luz há-de transparecer sobretudo na nossa vida. Quem tem uma vida de verdade está na luz porque aquilo que faz vem de Deus (cf. Jo 3, 21). Pelo contrário, quem pratica más acções odeia a luz (cf. Jo 3, 20). Daí que o Baptismo, sacramento eminentemente pascal, seja um acontecimento iluminador, um acontecimento de iluminação. O banho baptismal nos começos também era chamado «iluminação». E, no processo da preparação para o Baptismo, a terceira etapa é chamada «etapa de purificação ou iluminação».

De facto, ser baptizado é ser «iluminado». Os baptizados são «iluminados» («photismoi») não por uma luz própria, mas pela luz de Cristo elevado na Cruz e ressuscitado. Quando, depois da celebração do Baptismo, recaímos nas trevas, temos sempre novas oportunidades de nos reaproximar da luz. O Sacramento da Reconciliação devolve-nos a luz quando dela nos afastamos pelo pecado.

 

  1. É por tudo isto que a Quaresma é um tempo sério, mas não é um tempo triste. Como pode haver tristeza num tempo destes? A seriedade nunca é triste. É precisamente para nos lembrar a alegria da Quaresma que a liturgia deste Domingo tem uma tonalidade especial. Até é permitido usar o paramento cor-de-rosa. Aliás, houve uma altura em que este era conhecido como o «Domingo das Rosas», pois, na antiguidade, os cristãos costumavam oferecer rosas uns aos outros. Neste contexto, no século X surgiu o costume da «Bênção da Rosa». O Santo Padre, no IV Domingo da Quaresma, ia à Basílica de Santa Cruz de Jerusalém, levando na mão esquerda uma rosa de ouro que significava a alegria pela proximidade da Páscoa. A antífona de entrada, que o Missal hoje propõe, reforça este sentimento sem lugar a dúvidas: «Alegra-te, Jerusalém! Reuni-vos, vós todos que a amais; vós que estais tristes, exultai de alegria! Saciai-vos com a abundância das suas consolações»(Is 66, 10-11).

Tal como sucede no terceiro Domingo do Advento, o quarto Domingo da Quaresma é conhecido como o «Domingo da Alegria». Neste caso, recebe também o nome de «Domingo Laetare», imperativo do verbo latino «laetor» que significa «alegrar-se». Portanto, «laetare quer dizer «alegra-te». É Deus que, efectivamente, nos dirige este apelo e faz este convite. Que cada um de nós se alegre. Que cada um de nós se alegre não por causa de alguma fortuna, mas por saber que Deus nos visita, que Deus nos acolhe. Haverá fortuna maior? Haverá fortuna igual?

 

C. O que todos devem saber

 

5. Que fortuna pode ser comparada ao amor de Deus e ao Deus amor? Jesus garante a Nicodemos que «Deus amou de tal modo o mundo que entregou o Seu Filho único, para que todo o homem que acredita n'Ele não se perca, mas tenha a vida eterna»(Jo 3, 16). Tocamos aqui o ápice da história da revelação, da história da salvação e, nessa medida, da história da humanidade. Segundo alguns peritos, esta passagem é a chave do Evangelho de S. João. Ou seja, é nesta afirmação que entendemos tudo o que está escrito neste livro e, mais vastamente, em toda a Sagrada Escritura.

O que está escrito neste livro é o que deve estar permanentemente inscrito na nossa vida. No fundo, é isto que importa anunciar, é isto o que todos devem saber: que Deus ama, que Deus nos ama. Acontece que não ama de qualquer maneira. Em Deus, o amor não é uma palavra vã nem um sentimento vago. Se repararmos, nesta frase há uma fortíssima sinonímia entre o verbo «amar» e o verbo «entregar». Isto significa que, ao contrário do que se pensa, «amar» não é sinónimo de «possuir», mas de «entregar». Para Deus, a vivência do amor não está na posse, mas na dádiva. Deus ama-nos de tal modo que nos dá o melhor que tem: o Seu Filho.

 

  1. Ressalve-se, a propósito, que esta é a primeira vez que, no Evangelho de S. João, aparece a referência ao Filho. Deus ama-nos de tal forma que nos entrega o Seu Filho. É uma oferta enorme que só pode vir de um amor maior, de um amor total. Deus põe o Seu (amado) Filho à nossa inteira disposição. É por isso que uns O aceitam e outros O rejeitam. Não há dúvida de que é preciso ser Deus para amar assim o homem. Tão abismado ficou seguramente S. João que, na sua Primeira Carta, sintetizou tudo dizendo: «Deus é amor»(1Jo 4, 8.16).

Se, por hipótese, esquecêssemos tudo, bastaria que nunca perdêssemos de vista que Deus é amor. Deus não tem amor, Deus é amor. Nós, humanos, temos amor e também temos desamor, também temos ódio. Deus não. Deus é amor. Como reparou François Varillon, «Deus não é senão amor». Está tudo aqui. Está aqui tudo o que importa saber e é importante fazer.

 

D. Muito precisamos de «vitamina C», de «vitamina Cristo»

 

7. Eu atrever-me-ia a propor que repetíssemos incessantemente esta passagem de Jo 3, 16. Nunca esqueçamos que «Deus amou de tal modo o mundo que entregou o Seu Filho único, para que todo o homem que acredita n'Ele não se perca, mas tenha a vida eterna». Meditemos longamente esta passagem ao longo deste dia, ao longo desta semana, ao longo desta Quaresma, ao longo de toda a vida. Balbuciemos esta frase palavra por palavra e mastiguemos duradouramente a mensagem que, nela, nos é proposta.

De facto, tão diferente é Deus! Nós amamos e, por isso, ficamos à espera de possuir Deus ama e, por isso, não se cansa de dar, de Se dar. Deus é um amor que dá, que Se doa, que perdoa. Tudo é perdoado por este amor. Nada há acima deste amor. Por conseguinte, não tenhamos medo de vir ao encontro deste amor. Amanhã já é tarde. O amor de Deus urge. O amor de Deus é urgente.

 

  1. Deus abastece-nos com doses intermináveis de «vitamina C», de «vitamina Cristo». Jesus Cristo é o amor de Deus presente, é o amor de Deus sem limites. Nem a morte O faz recuar. Tudo é dado para lá dos limites. Mesmo depois da morte, continua a dar-Se, a dar-Se-nos.

Deus não quer a condenação de ninguém. Ele «não enviou o Seu Filho para condenar o mundo, mas para ser salvo por Seu intermédio»(Jo 3, 17). O Seu amor é infinitamente maior que o nosso pecado. O Seu amor consegue afogar o nosso pecado. Deus é rico, não em riquezas, mas em misericórdia (cf. Ef 2, 4). Não temos nada a pagar, só temos muito — a bem dizer, temos tudo — a receber. Como refere S. Paulo, é de graça que estamos salvos (cf. Ef 2, 5). Assim sendo, nada podemos impor, tudo somos convidados a oferecer.

 

E. Misericórdia para com todos

 

9. Como imagem e semelhança de Deus, cada um de nós deve ser imagem e semelhança da Sua misericórdia. Sejamos sempre misericordiosos para com todos. A misericórdia tem, quase sempre, o nome de respeito pelas diferenças. Não neguemos, pois, a misericórdia aos que estão no erro. Mas também não recusemos misericórdia aos que, mesmo na fragilidade, nos alertam para a verdade.

Dizem alguns mestres que, não raramente, perdoamos mais o mal que se faz do que o bem que se pratica. Pode parecer despropositado recordar isto, mas, por vezes, parece que somos mais receptivos a quem difunde a maldade do que a quem anuncia a verdade.

 

  1. Precisamos de uma efectiva cultura do respeito não só para com alguns, mas para com todos. Se Jesus nos atrai para o Céu, com que legitimidade podemos transformar a vida de alguns irmãos nossos num inferno?

Aprendamos com Jesus. Com a explosão do Seu amor, demos uma oportunidade ao que de melhor está em nós. Deus semeou tanto bem na nossa vida. Não deixemos que esse bem fique lá num fundo tão fundo que ninguém consegue encontrar. Quando a mudança é para melhor, não tenhamos medo de mudar!



Original Article: http://theosfera.blogs.sapo.pt/seriedade-nao-e-tristeza-quarto-domingo-2876161



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