Matrimônio: entre crise e beleza

Padre Anderson Alves publica o primeiro de uma série de textos sobre este "grande mistério". "O verdadeiro problema atual não é a crise no casamento, mas sim a crise de fé, que não permite ao homem reconhecer a beleza do matrimônio e dos dons de Deus", diz ele. Aqui no Links Católicos, você encontra o texto com alguns comentários. Leia mais.
O texto original se encontra no site Zenit.  E eu vou fazer alguns comentários em azul.

Fala-se muito ultimamente de casamento. Esse parece ser um direito de todos e, ao mesmo tempo, tem-se a impressão de que se sabe cada vez menos o que ele realmente é. Existem muitos casamentos que se rompem e é ainda maior o número de pessoas que não se decidem jamais a se casar.

Ao dizer que o casamento "parece ser um direito de todos", o autor já revela a perspectiva que assumirá ao longo do texto. Nesta perspectiva, o casamento é um dom, algo que nos vem dado e não algo construído por nossas mãos. Daí a beleza anunciada no título do artigo. Claro que se poderia falar do matrimônio como "direito" (por exemplo, como o faz a Carta dos Direitos da Família), mas essa seria outra perspectiva que de maneira nenhuma contradiz o dado essencial do matrimônio como um presente que vem do alto.

A Palavra de Deus também fala muito do matrimônio, no contexto da revelação de Deus à família humana. Jesus ensina que o casamento é algo sagrado, um gesto com o qual um homem e uma mulher se tornam um só corpo e alma por toda a vida. E o Senhor sempre acolheu e abençoou as crianças, o fruto natural do casamento. Deus revela-se então como alguém que ama e abençoa as famílias; na verdade, ele quis que o homem viesse ao mundo através das famílias e Ele mesmo se fez homem no seio de uma família humana. O Deus que é único, grande e todo-poderoso fez-se criança em Jesus, vivendo por trinta anos, submetido a uma família.
Aqui há um dado importantíssimo para todo discípulo do Senhor. O autor nos conduz a olhar o matrimônio sob a luz de Cristo: nos seus ensinamentos, no seu comportamento, na sua vida. Precisamos educar nossa inteligência para olhar e avaliar o mundo sob a luz de Cristo, e essa luz nos é dada pela Igreja. Sempre é útil ver a realidade através de vários conhecimentos humanos (por exemplo, o casamento à luz da sociologia, ou do direito, ou da psicologia), mas sempre a partir do Verbo, do sentido fundamental de tudo o que existe: Jesus Cristo.
O Evangelho fala-nos, sem dúvida, da santidade e indissolubilidade do matrimônio: aqueles que se casam, tornam-se uma só carne e nada pode separá-los. Mas estas palavras para nós, homens do século XXI, são fonte de certo desconforto e confusão. Sabemos que mais de 40% dos casamentos falham, e muitos querem considerar “direito” separar o que Deus uniu. Esta é uma verdadeira tragédia atual, que causa dor e sofrimento, especialmente nas crianças. O casamento parece ser uma escolha de poucos e algo sem nenhum valor. Nesta situação, as crianças são cada vez mais raras e chegam quase a desaparecer.
De onde vem nosso "desconforto e confusão"? Pode haver traços de nossa cultura atual que o explicam, como o individualismo tão marcante em nossa sociedade. A raiz desse desconforto, porém, não está em um dado cultural (que poderia variar ao longo do tempo), mas em algo mais existencial: a raiz desse desconforto, dessa confusão, está "na dureza dos corações" (Mt 19, 8), provocada pelo pecado. Também os ouvintes de Jesus, inclusive os Apóstolos!, ficaram atônitos quando ouviram Jesus falar da indissolubilidade do matrimônio, o que nos leva a pensar que essa dificuldade persiste independentemente da cultura. A indissolubilidade só pode ser bem entendida à luz do amor, como se verá ao longo do texto.
No entanto, se o homem olha para si mesmo, percebe que possui um grande desejo de amar outra pessoa totalmente, para ser feliz, fazendo outra pessoa feliz. Todo homem tem o desejo de doar-se totalmente, pois o amor ou é total ou simplesmente não existe. O amor exige a eternidade, a perfeita doação. Mas porque temos este desejo e, ao mesmo tempo, parece ser impossível de realizá-lo?

Este grande desejo existe, porque a nossa vida é um dom gratuito, recebido de Deus. Não viemos à existência por nós mesmos, mas por causa do amor de outras pessoas. Deus nos criou livre e gratuitamente, sem pedir nada em troca, porém isso se realizou através do amor de nossos pais. Por esta razão, o homem só pode ser realizado quando se entrega, doando a Deus e aos outros os bens recebidos.
O homem não pode realizar-se a não ser no dom sincero de si mesmo (Gaudium et spes, 24). Entender nossa vida como vida-para-o-outro, como um dom, é o desafio de toda educação, inclusive da educação sexual ou educação afetiva. É por isso que o Pontifício Conselho para a Família, ao publicar as orientações educativas em Sexualidade Humana: verdade e significado, apresenta o amor como dom de si (n. 9). Se Deus é amor e se somos sua imagem, isso significa que nossa identidade está marcada por essa espécie de "apetite" para o dom, para a pertença, para a aliança. Eis o mistério nupcial do homem!
Uma das maneiras – certamente não a única – de entregar-se totalmente a Deus e aos outros é o matrimônio. Os cônjuges que se amam, acima de tudo amam a Deus, fazem de suas vidas um dom recíproco, encontram um caminho para a felicidade e podem cooperar com Deus no poder único de gerar vidas. O verdadeiro amor é absoluto, exige a totalidade do tempo, a abertura à vida, o desejo de entregar-se para sempre. Aquele que ama verdadeiramente busca doar-se completamente, e quando o amor é doado, não se perde ou extingue, mas cresce e frutifica. O amor é destruído somente quando uma pessoa se casa pensando em fazer-se feliz e não descobre que só existe um caminho para a felicidade: buscar a felicidade da pessoa amada.
O autor descortina vários elementos importantes, cada um podendo ser objeto de um texto específico. O que a "totalidade do tempo" e a "abertura à vida" teriam a ver com a autenticidade do amor? O amor não pode ser também verdadeiro mesmo sem esses elementos? Esse é um questionamento que podemos receber de homens e mulheres que convivem conosco, inclusive dentro da Igreja. Mas se o amor é doação da própria vida, de fato pressupõe a "totalidade do tempo" (indissolubilidade) e a "abertura à vida" (fecundidade).
A indissolubilidade cria o único ambiente possível para que a entrega da vida seja realmente total, como fez Jesus por nós. Só a certeza de que minha esposa estará sempre comigo é que permite que eu invista todo meu ser na minha entrega a ela. Vamos para um exemplo concreto. Conheço um casal que não acredita na indissolubilidade do casamento. Já é o terceiro casamento dele, e o segundo dela. Resolveram comprar um terreno e construir uma casa. Para isso, fizeram um financiamento na Caixa, para ser pago em 30 anos. Só que, como no fundo dos corações, acham que não estarão juntos esse tempo todo, começa uma negociação: se ele investe dinheiro, quer que ela também invista, porque não quer sair no prejuízo. Ela também vai exigindo as contrapartidas. Essa forma negociada de convivência nasce da insegurança: eles não têm certeza de que são amados um pelo outro. A indissolubilidade permite a segurança psíquica, afetiva, espiritual, que lança nosso amor a vôos mais altos, na medida da estatura de Cristo (Ef 4, 13). 
A abertura à vida faz com que o casal, que é um só pela comunhão, se doe totalmente para os filhos. Assim como cada pessoa, para ser feliz, precisa se entregar ao outro, também esse "sujeito" que é o casal precisa sair de si na entrega a um "tu", que é o filho. Por vezes, um casal pode se ver obrigado a espaçar uma gravidez, e por isso pode se valer de técnicas de planejamento familiar. Mas precisa aprender a ver esse fato como um mal, pois é mau que não tenhamos dinheiro, ou saúde, ou condições psíquicas, ou condições morais, ou moradia, etc., para ter mais um filho. É um mal! E por isso o casal precisa aprender a rogar a Deus que lhe dê filhos (pois isso implica em pedir a Deus que remova o mal de suas vidas, seja este mal qual for).
Além disso, Deus quis que o casamento fosse um Sacramento, um sinal sagrado que dá aos homens a capacidade de doar-se em um amor total e fecundo para toda a vida. “Nosso Salvador foi ao casamento de [Canaã] para santificar as origens da vida humana” [1]. E o Sacramento pressupõe a igualdade da dignidade de homem e mulher, assim como a complementaridade. O livro de Gênesis diz que Adão, após a criação, viu todos os animais e não encontrou nenhum que lhe fosse semelhante. Em seguida, o texto bíblico usa uma bela imagem poética: a mulher foi criada a partir de uma costela do homem. A imagem significa que a mulher é igual ao homem em dignidade. Ela não foi feita dos pés de Adão, porque não é inferior a ele; nem mesmo pode-se dizer que Deus tenha tirado o cérebro do homem para fazer a mulher. Deus a criou a partir da costela do homem, porque é a parte do corpo humano que está mais próxima ao coração. Assim, quando Adão viu Eva gritou de alegria: “Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Ela será chamada mulher, porque foi tomada do homem” (Gn. 2, 22-23).
Nós, casais-discípulos, precisamos entender mais esse mistério. O que fomos celebrar naquele dia em que nos casamos na Igreja? Fomos celebrar apenas o nosso casamento? Ou será que fomos celebrar Cristo, em sua entrega pela Igreja? Um olhar mais cristocêntrico pode nos ajudar a compreender que, também em nosso matrimônio, somos "embaixadores de Cristo" (2Cor 5, 20). Cada casal é, neste mundo, como que uma janela pela qual as pessoas podem contemplar e adorar Cristo se entregando por sua Esposa. A começar pelos nossos filhos, que precisam ver esse amor de Cristo "encarnado", bem diante dos olhos deles, ao ver papai e mamãe se amando. Somos uma janela certamente imperfeita, talvez opaca, mas é possível através dela antever "as núpcias do Cordeiro" (Ap 19, 9). Que grande dom de amor nos deu o Senhor ao transformar aquilo que era naturalmente um casamento em Sacramento! 
O Beato João Paulo II, comentando estes textos, disse que Deus criou todas as coisas com ordem, começando pelas mais simples, como a luz, a água, a terra, e terminou com as mais complexas: o homem e a mulher. Por conseguinte, a mulher é mais a criatura mais “perfeita” do universo e a mais complexa. Por esta razão, os homens são incapazes de entender as mulheres e o demônio quis tentar em primeiro lugar à mulher. Ele sabia que, uma vez destruída a dignidade da mulher, toda a criação viria à ruína. Ele agora usa a mesma estratégia: destruir a figura da mulher para pôr em crise toda a sociedade.
O autor toca no mistério que a mulher é para o homem. É também possível falar do mistério que o homem é para a mulher, embora em outro nível. O amor conjugal é essa entrega a um mistério, por isso tem algo de divino, reconhecido, aliás, em quase a unanimidade das culturas e religiões.A simplicidade do homem e a complexidade da mulher nos falam do Deus Uno e Trino. A comunhão entre essas duas versões de imagem-semelhança falam desse Outro, mais íntimo de nós do que nós mesmos.Por isso, a primeira missão do casal humano é formar uma comunidade de pessoas, como ensinou o Beato João Paulo II  na Familiaris consortio.
É uma pena que ainda seja necessário sublinhar a dignidade da mulher. Infelizmente, um dos efeitos do pecado é justamente essa má submissão, esse domínio prepotente do homem sobre a mulher ("teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio", Gn 3, 16). O seguimento de Cristo nos leva à conversão nesta área: "Vós, ó maridos, comportai-vos sabiamente no vosso convívio com as vossas mulheres (...) elas são herdeiras, com o mesmo direito que vós, da graça que dá a vida. Tratai-as com todo respeito para que nada se oponha às vossas orações" (1Pe 3, 7).
Mas precisamos nos precaver contra a mentalidade moderna de "igualitarismo", pois as mulheres têm uma vocação diferente dos homens. Há um ponto do Novo Testamento que escandaliza a mentalidade igualitária, pois parece reduzir a dignidade da mulher. Na verdade, porém, coloca a mulher como portadora de um dom excelso. Trata-se do dom da submissão.
Antes de tudo, precisamos entender que Cristo é o nosso modelo. Ele revela a nós o mistério que nós mesmos somos, ele é o homem perfeito à imagem do qual todos nós fomos criados. E ele foi obediente. Viveu essa obediência aos seus pais e, depois, revelou-nos essa radical obediência ao Pai (ex., Fl 2, 8).
Os discípulos casados são chamados a submeterem-se uns aos outros no temor de Cristo (Ef 5, 21). Até aí, a mentalidade igualitária se compraz com o cristianismo. Mas é preciso entender, então, que submeter-se, servir ao outro, ser solícito, é ser como Cristo, é ser grande, é glorioso. E foi dado às mulheres o dom de se submeter ao marido, como a Igreja a Cristo. Há uma insistência, nos escritos dos Apóstolos, no que se refere ao convite a essa submissão (ex.: Ef 5, 22; Cl 3, 18; Tito 2, 5; 1Pd 3, 1). Ainda que marcadas pelo seu momento histórico, essas são palavras de vida eterna.
Marido, sua esposa foi feita para ser possuída, mas no amor. As mulheres gostam de se submeter a um marido amoroso, que se entrega a ela, que a ama. Nós, homens-discípulos, precisamos aprender a possuir nossas esposas ao mesmo tempo em que nos entregamos a elas. Tarefa difícil, porque possuir e se entregar parecem movimentos contraditórios. Nossa primeira tarefa como homens que querem possuir no amor é lutar pela nossa conversão. Isso implica aprender de Cristo, que deu seu corpo por sua Esposa. Depois, precisamos aprender o ritmo das nossas mulheres, por exemplo apreciando suas alternâncias hormonais (e de humor!), ainda que não o compreendamos totalmente. Que elas se sintam seguras no nosso acolhimento ao longo do dia todo, para que se sintam possuídas no amor.
Quando comecei a ter dança de salão, fiquei admirado por ver que o cavalheiro tem que conduzir a dama. É preciso dar sinais a ela, sinais seguros, e ela vai obedecendo e dançando. Isso para mim foi como uma parábola que me ensina a ser marido: preciso ser aquele que dirige, mas para que ela possa florescer em todo o seu esplendor, que ela possa dançar com toda sua beleza, que ela possa se divertir com toda a sua alegria. 
É preciso entender a Palavra, que tanto pela boca de Paulo (Col 3, 18) como de Pedro (1Pd 3, 1), exorta as mulheres a serem submissas. Se é verdade que homem e mulher devem se submeter um ao outro (Ef 5, 18), há um convite especial às mulheres. Elas foram dotadas dessa graça de ser capazes de se entregar, de se submeter ao amado, de se deixar possuir, e isso para nós, maridos, é um farol, um exemplo de como devemos ser também em relação a Deus.

Homens e mulheres são semelhantes e estão ligados pelo coração; mas para permanecer fiel um ao outro necessitam de Deus, da sua graça, que é dada especialmente no dia em que recebem o Sacramento do matrimônio. A graça, porém, necessita ser alimentada diariamente, através da oração comum, da participação nos demais Sacramentos. O verdadeiro problema atual não é a crise no casamento, mas sim a crise de fé, que não permite ao homem reconhecer a beleza do matrimônio e dos dons de Deus. Quem se afasta de Deus, se esquece de que o homem é uma criatura que só se realiza através da doação livre e gratuita. Peçamos ao Senhor que as famílias cristãs sejam capazes de encontrar sua força em Deus e que os jovens não tenham medo de realizar o plano que Deus tem para eles.
É o Espírito Santo que arranca tudo o que causa divisão; ele nos une num só corpo (isso vale para a Santa Igreja como também para a micro ecclesia, ou seja, a família). Obrigado, Padre Anderson, por esse texto tão rico, tão sugestivo!
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NOTAS

[1] São Cirilo de Alexandria, In Ioannem Commentarius, 2, 1 [PG 73223].

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